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A prova ilícita e o seu conteúdo


Por Daniel Kessler de Oliveira


Questão de difícil compreensão no âmbito do processo penal por pessoas leigas e, até mesmo, por técnicos que labutam em outros ramos do direito, gira em torno da prova ilícita, mormente, em relação ao conteúdo desta.

Tal fato chega a ser motivo de ironia por profissionais de outros ramos do Direito, que não conseguem compreender as situações relativas ao Direito Penal a partir de categorias próprias e elementares do processo penal.

A proibição de utilização de provas ilícitas é expressa em nossa legislação processual penal, art. 157 do CPP, bem como em nossa Constituição Federal, Art. 5º LVI.

Entretanto, não bastasse isto, ainda rende muita discussão a proibição da prova obtida por meio ilícito, nunca faltando aqueles que argumentam no sentido de priorizar o conteúdo desta em detrimento da forma.

Ora, de nada adiantaria zelarmos por uma produção probatória que obedecesse os critérios de legalidade e os valores constitucionalmente consagrados, se permitirmos que o seu conteúdo seja avaliado ou considerado de alguma forma.

Ao permitir a análise do conteúdo ou sujeitar a inutilização da prova ao material trazido no meio de ilicitamente produzido, estamos tornando sem sentido a existência destes dispositivos legais e constitucionais.

Devemos superar a ingênua e, por vezes, oportunista visão utilitarista do processo penal, na qual os fins obtidos possam legitimar os meios utilizados, o que representaria um enorme retrocesso em termos civilizatórios.

Para isto, é necessário afastar a ideia de que as provas no processo buscam a verdade real, pois esta crença que legitima o utilitarismo e flexibiliza critérios de legalidade probatória.

A prova não pode objetivar o revelamento de qualquer verdade, por esta estar inalcançável ao instrumento que dispomos, conforme nos ensina COUTINHO (2004, p. 78), que analisando o trabalho realizado por Francesco Carnelutti, conclui que a verdade está no todo e o todo é demais para nós, assim, a verdade é uma só, não podendo ser outra coisa e nem com o processo, nem através de modo algum a verdade pode ser alcançada pelo homem.

Daí a necessidade de se desconstituir este mito da “verdade real”, por ser, nas palavras de LOPES JR. (2006, p. 272), uma artimanha engedrada nos meandros da inquisição para justificar o substancialismo e o decisionismo processual, típicos do sistema inquisitório.

Não há sentido questionar a ilicitude de um meio de obtenção de prova, enquanto se trabalhar com a utópica ideia de busca pela verdade, pois as provas orientadas a busca da verdade, não ignoram a tortura, procurando sempre a confissão do Acusado, tida como a rainha das provas, em uma visão própria de um sistema de provas hierarquizadas, conforme leciona ARMENTA DEU (2012, p. 24).

O processo não só não permite revelar verdade alguma como, ao contrário, atrapalha, impede que se alcance esta tal “verdade”, por isto o preconceito daqueles que enxergam no processo um instrumento para o anseio punitivista, em tratar de temas como ilicitude de provas.

Sobre isto, imperiosa a lição de BINDER, ao referir que “a verdade como meta de indagação não necessita de regime probatório, para descobrir a verdade não necessitamos de regras processuais, muito pelo contrário, estas obstaculizam, molestam e entorpecem a busca pela verdade.”

Ao assumir que a atividade probatória conforma um procedimento cuja finalidade seria a captura psíquica do juiz, damos um importante passo para a superação da concepção de prova voltada para o estabelecimento da verdade real. Afinal, como refere KHALED JR. (2013, p. 406), por mais profundo que seja o convencimento do juiz, tal convencimento não equivale à verdade correspondente, nem à certeza moderna, pois não há modo pelo qual se possa separar de uma forma completa crença e convicção, motivo pelo qual a incerteza não pode ser erradicada do processo.

Portanto, são coisas que não podem coexistir: a proibição de provas ilícitas e a busca pela verdade real, de modo que a defesa de uma destas, exige a negação da outra.

Sob este viés que está estruturada a nossa legislação, de modo que a prova por ser ilícita não pode interessar ao processo, não importando qual seja o seu conteúdo, qual tenha sido a sua “revelação”.

Ainda que o conteúdo da escuta ilegalmente obtida ou que a busca e apreensão desautorizada possam revelar fatos importantes, estes não merecem sequer consideração, na medida em que não precederam de uma obtenção legítima, que constitui um pressuposto básico de sua validade.

Este é o preço a ser pago para que possamos viver em uma era democrática, na qual o Estado compreende o indivíduo como um sujeito de direitos, que possui suas garantias fundamentais devidamente defendidas pelo conjunto normativo vigente, não se admitindo restrições indevidas nestes direitos fundamentais.

O Estado não pode ele descumprir a lei, ainda que em nome da “justiça”, da “punição”, da “verdade” ou de qualquer outro elemento comumente utilizado como pretensa justificativa para práticas que tentem legitimar pelo fim obtido o meio ilegal que o precedeu.

A nossa Constituição Federal e a eleição por um modelo acusatório com o respeito aos direitos e garantias fundamentais, como refere BINDER (2003, p. 66), preferiu sacrificar a verdade antes que facilitar o abuso de poder.


REFERÊNCIAS

ARMENTA DEU, Teresa. Sistemas Procesales Penales. La justicia penal em Europa y America. Madrid:  Marcial Pons, 2012.

BINDER, Alberto M. O descumprimentos das Formas Processuais: Elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Trad. Angela Nogueira Pessoa com revisão de Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao Verdade, Dúvida e Certeza de Francesco Carnelutti para os Operadores do Direito. In: Revista de Estudos Criminais Ano 4 Nº 14. Sapucaia do Sul: Notadez, 2004.

KHALED JR., Salah Hassan A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

LOPES JR. Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. (fundamentos da instrumentalidade constitucional). 4. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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Daniel Kessler de Oliveira

Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

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