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A revolução nanotech e o futuro do Direito Penal

Por Bernardo de Azevedo e Souza

Em sua obra Flagrantes da vida no futuro, João Antônio Zuffo convida-nos para uma viagem no tempo. O destino? O Brasil no ano de 2038. Composto por setenta crônicas, o livro retrata fatos e situações do cotidiano neste futuro não tão distante, possibilitando uma verdadeira imersão num universo onde a tecnologia é onipresente. Ao contrário das ficções científicas baseadas única e exclusivamente na imaginação, sem qualquer vínculo com a ciência de nossos dias, a obra antecipa futuras possibilidades da aplicação das novas tecnologias já verificáveis no presente.

No mundo idealizado por Zuffo, o medo e a insegurança existentes em nossa sociedade já não são mais uma realidade: milhares de câmeras com zoom de longo alcance estão posicionadas em locais estrategicamente selecionados. Vigiam a tudo e a todos, armazenando uma infinidade de imagens e sons em seus bancos de dados. Da mesma forma, centenas de microrrobôs auxiliam os policiais diariamente no enfrentamento da criminalidade, lançando calmantes em infratores para conter a violência.

No ambiente futurista de 2038, o número de mortes decorrentes de acidentes de trânsito é ínfimo, já que os motoristas não mais assumem a direção de seus veículos, ora pilotados pelos sistemas de Inteligência Artificial (IA). Os automóveis, elétricos e livres de poluentes ao meio ambiente, percorrem as estradas (completamente automatizadas) em velocidades controladas. Além de seguras, as viagens são confortáveis: muitos veículos possuem, em seu interior, sistemas de televisão interativa tridimensional, com óculos wireless individualizados para aumentar a imersão. O congestionamento do tráfego do presente inexiste no universo fantasiado pelo autor, diante do número cada vez maior de teletrabalhadores.

As transações comerciais são realizadas sem sair de casa, por comandos de voz. O câmbio físico de dinheiro igualmente não mais é utilizado em decorrência da absoluta virtualização monetária. Aliás, em 2038, toda informação é disponibilizada de forma eletrônica. Os antigos computadores portáteis foram naturalmente substituídos por clones eletrônicos pessoais, leves e inteligentes. Companheiros inseparáveis dos seres humanos, os clones possibilitam criar avatares dos humanos, desenvolvendo um ambiente virtual para a realização de diversas teleconferências, simultaneamente, em qualquer parte do planeta.

O tráfico de drogas está em colapso no Brasil de 2038. A implantação de chips no cérebro e a comunicação direta cérebro-máquina substituiu o uso de entorpecentes pelas viagens eletrônicas. Usuários perdem o senso de realidade física vivendo completamente imersas no universo virtual, se esquecendo até mesmo de suas necessidades fisiológicas. O universo futurista imaginado pelo autor é repleto por nanorrobôs, que realizam desde atividades de higiene, como limpar os dentes, aparar a barba e cortar o cabelo, até operações cirúrgicas, corrigindo e modificando o DNA para reproduzir células mais jovens e rejuvenescer os seres humanos.

A breve síntese do livro de João Antônio Zuffo pode até mesmo parecer, para alguns, algo semelhante ao enredo de um filme de ficção científica hollywodiano. Ocorre que o avanço tecnológico contemporâneo é, inegavelmente, tão rápido – e ao mesmo tempo tão assustador – que poderíamos até mesmo nos perguntar por que as previsões do autor não seriam passíveis de se concretizar no ano de 2038? Ora, é tão difícil imaginar veículos sendo conduzidos automaticamente, a implantação de chips no cérebro ou mesmo microbôs de vigilância por todos os cantos daqui a exatos 23 anos?

Se, por um lado, é possível reconhecer que Zuffo é bastante otimista, a ponto de vislumbrar uma sociedade futurista sem violência, de outro não se pode negar que a ciência progride com muita velocidade nos dias de hoje e importantes descobertas são verificadas diariamente em diversas esferas. Estamos vivendo uma época de inúmeros avanços científicos, em que as denominadas nanotecnologias, apesar de pouco esclarecidas à sociedade de modo geral, são uma realidade indiscutível. Em capas de revistas científicas e mesmo em conferências ao redor do globo já se utiliza o bordão: o futuro é nano.

E falar em nanotecnologias é falar na possibilidade de se manipular artificialmente átomos e moléculas. Os cientistas descobriram como remanejar características de elementos minúsculos para criar novas funções e também novas propriedades. A manipulação da matéria opera-se na escala nanométrica. Um nanômetro equivale a um bilionésimo do metro (1×10–9). É algo muito pequeno: imagine algo como uma moeda de 10 centavos em relação ao planeta.

Para compreender simplificadamente como isso é feito, tomemos como exemplo o jogo de tabuleiro Scrabble (popularmente comercializado no país com o nome “Palavras Cruzadas”). O objetivo deste famoso jogo é em movimentar determinadas peças e formar palavras interligadas. Quem formar mais palavras, vence. Durante a partida, os jogadores tem total liberdade para remanejar as peças e, com isso, criar novas palavras. O termo “AMOR”, por exemplo, pode tomar forma de “ROMA” ou ainda, após o acréscimo de algumas letras, originar a expressão “AROMÁTICO”.

No âmbito das nanotecnologias, ocorre semelhante processo. Por meio de um microscópico eletrônico de varredura, os cientistas podem criar novas características de partículas desde o seu nascedouro. Para ficarmos em apenas um exemplo, imagine o leitor alterar a propriedade de moléculas para repelir a absorção de água, construindo assim um tecido impermeável. Tal tecnologia pode perfeitamente ser inserida em sapatos, camisas ou calças (veja este vídeo), possibilitando caminhar na chuva sem se molhar. Os desagradáveis respingos de comida na vestimenta durante o almoço não mais seriam possíveis se o prejudicado estivesse trajando uma camiseta nanotecnológica.

A criatividade humana parece ilimitada e sem pudor de progredir cada vez mais, o que nos conduz, ao lado das descobertas científicas, ao verdadeiro desafio: os riscos que a manipulação nanoescalar pode gerar para os seres humanos e para o meio ambiente (ENGELMANN, 2015, p. 50). Tendo em conta que as pesquisas em relação à nanotoxicologia ainda são incipientes, a questão que permanece é: o ser humano conseguirá controlar os efeitos das nanotecnologias?

Equivoca-se quem pensa que o Direito e notadamente o Direito Penal estão alheios a toda esta complexidade. Veja-se que a Lei 12.654/2012 que, ao prever a coleta de material biológico para obtenção de perfil genético como forma de identificação criminal, introduziu o Direito Penal no universo nanotecnológico, possibilitando o início de um diálogo interdisciplinar entre estas áreas do conhecimento.

Se a utilização do DNA – cuja cadeia tem 2 nanômetros de largura – para fins de investigação criminal já fomentava, à época do advento da legislação, diversas problemáticas – como o caráter pessoal e sensível das informações e a violação de direitos fundamentais –, a revolução nanotech que estamos vivenciando hoje possibilita a manipulação do próprio código genético. Até que ponto, portanto, o material genético coletado no local do crime poderá necessariamente significar a comprovação de autoria (e não um produto de alteração)? Qual o nível de certeza quanto à titularidade? Como questionar a prova de DNA, ainda vislumbrada por muitos como indiscutível e incontestável? Como realizar a coleta, rotulagem e transporte do material adequadamente? Temos, no Brasil, mecanismos aptos para possibilitar a viabilização de tais procedimentos? A persecução criminal necessita ingressar no mundo das nanotecnologias?

O diálogo entre o Direito Penal e as nanotecnologias, como é possível observar, suscita mais perguntas do que respostas. A complexidade do debate é tamanha que delimitar as noções das nanotecnologias e os efeitos decorrentes de sua manipulação é uma árdua tarefa para os próprios cientistas. O que podemos esperar, então, dos atores judiciários, que, mais cedo ou mais tarde, se depararão com problemas desta natureza, sem ter os conhecimentos técnicos que demandam as imprevisíveis, complexas e sofisticadas nanotecnologias?

O que o futuro reserva para o Direito e, sobretudo, para o Direito Penal?


REFERÊNCIAS

ENGELMANN, Wilson. As nanotecnologias e a gestão transdisciplinar da inovação. In: ENGELMANN, Wilson; WITTMANN, Cristian (orgs.). Direitos humanos e novas tecnologias. Jundiaí: Pacto Editorial, 2015, pp. 50-78.

ZUFFO, João Antônio. Flagrantes da vida no futuro. São Paulo: Saraiva, 2007.

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