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“A vida imita a arte”: como ficção e realidade podem se relacionar?


Por Vitor da Matta Vivolo


Diante dos atuais acontecimentos políticos brasileiros, torna-se cada vez mais inegável o ditado “a vida imita a arte”. As ‘linhas do tempo’ de nossos facebooks são inundadas por analogias sarcásticas entre a série House of Cards e Brasília. Uma pergunta, portanto, deve ser indagada: existe uma rede de influência entre realidade e ficção?

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Dúvida esta posta desde os primórdios dos romances, iniciemos nossa investigação pela finalidade da ficção como “produto”. Quaisquer obras fictícias, sejam elas de diferentes mídias – impressas, televisivas, cinematográficas, etc – têm como objetivo serem consumidas pela sociedade que as abarca. Nenhum exercício de criação pressupõe sua existência in vacuo, mas sim sua apropriação ou (re)leitura como discurso social.

Em termos mais simples: uma obra nasce para ser fonte diálogo entre criador e sociedade. É um discurso que assume as futuras respostas e reações a ele no momento de sua criação. Não é à toa que existe todo um aparato de “triagem” para a visibilidade desses materiais: um filme geralmente atravessa o crivo de seus patrocinadores ou produtores, um livro o de seus editores, uma série o de sua emissora…

Dessa forma, quaisquer universos fictícios que venham a existir alimentam-se diretamente dos membros sociais aos quais se dirigem. É o que chamaríamos vulgarmente de “público alvo”. Portanto, uma série de tv como House of Cards é dirigida de forma a ser reconhecida nos “fatos reais” à nossa volta.

C. S. Lewis, escritor notoriamente conhecido pela autoria de As Crônicas de Nárnia, elaborou um interessantíssimo ensaio sobre as obras fictícias de origem literária denominado “Um Experimento na Crítica Literária”. Dentre suas teorias, Lewis aponta dois mecanismos de construção de universos a ser utilizados por autores: o “realismo de representação” e o “realismo de conteúdo”. Para ele, o primeiro é a “arte de tornar algo mais próximo de nós, tornando-o palpável e vívido, por meio de detalhes precisamente observados ou nitidamente imaginados”, enquanto o segundo seria uma ficção de conteúdo provável ou “fiel à realidade”.

Utilizemo-nos de um conto de fadas para exemplificar tais termos: Chapeuzinho Vermelho. Para Lewis, se realmente analisasse tal caso, o fato de um lobo ser capaz de falar e seduzir uma garotinha faz parte do universo ficcional criado pela narrativa. Desta forma, ao ouvirmos a história, não contestamos a capacidade discursiva e eloquente de um animal falante, visto que a fantasia nos transporta para uma “representação” de cunho “realista” dentro da lógica proposta pelo narrador e pelo próprio gênero da obra. É um mundo no qual lobos podem falar, incontestável dentro dos diversos outros casos nos contos de fada.

Agora, atenhamo-nos ao conteúdo. Obviamente, ao ouvinte adulto, não existe cenário realista no qual um lobo falante pode interromper uma garotinha na floresta a fim de roubar sua cesta de doces. Não há realismo de conteúdo, no entanto, o realismo da representação é capaz de construir uma “moral” à história, fazendo com que uma mensagem comportamental – leia-se “não fale com estranhos” – possa ser transmitida e compartilhada dentre seus “consumidores”.

Obras de ficção apropriam-se desses moldes em nossas mentes, capazes de tomar símbolos e significados sociais, transmutando-os em narrativas e mensagens de teor “prático” no dia-a-dia.

Da mesma forma, a realidade é capaz de erguer expectativas perante uma ficção com quem tenta estabelecer um diálogo. Vidal Antonio de Azevedo Costa, na obra “Visões Ascendentes: fragmentos do olhar curitibano aos mais leves que o ar”, elabora metodologicamente a interessante tese de que, aos leitores da ficção científica, por exemplo, as primeiras passagens de balões nos ares do início do século XX foram totalmente frustrantes. Acostumados às viagens espaciais e engenhocas mirabolantes, uma mera bolha de tecido flutuante era realmente decepcionante como criação humana. Ou seja, conforme a ficção influencia a vida em forma de referência, as expectativas sociais são reformadas e, consequentemente, tornam a sociedade mais exigente frente à própria obra ficcional.

Não é mero acaso que já existem rumores circulando de que a atual crise política brasileira será palco de inspiração a uma nova série política do Netflix. Arrisco até mesmo dizer que os roteiristas da futura temporada do sr. e sra. Underwood estão tendo uma bela aula prática do tipo de circo político que pode veridicamente acontecer na tal “vida real”.

Portanto, não escarneçam quando a vida imitar a arte. Não é só mera coincidência.

_Colunistas-VitorMatta

Vitor da Matta Vivolo

Historiador. Mestrando em História. Pesquisador com ênfase no Século XIX e Belle Époque.

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