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Ativismo judicial e interpretação criativa: o protagonismo do Judiciário brasileiro

Por Chiavelli Facenda Falavigno

A tarefa do intérprete é essencial ao desenvolvimento da ciência jurídica como um todo. Quando se trata do julgamento e análise de casos concretos, esse intérprete não é outro senão o magistrado. Em que pese seja o Brasil, teoricamente, filiado ao sistema jurídico ocidental denominado Civil Law, que atribui um maior poder ao legislador na criação do direito, sendo a lei sua fonte material mais relevante, o que se tem vislumbrado na prática é uma verdadeira releitura desse papel.

O fenômeno se deve a vários fatores, dentre os quais está a crescente perda de credibilidade do Poder Legislativo brasileiro. Este tem sido costumeiramente lembrado apenas por sua morosidade e pelos vultosos gastos, bem como pelos rotineiros casos de corrupção que envolvem sua atuação.[1]

Ainda, é importante salientar que o juiz se encontra mais perto do caso concreto, possuindo um maior contato com a realidade local. Os juízes não apenas ouvem, mas também observam as partes, em grande parte dos casos, quando da realização de audiências. Isso lhes permite auferir com mais cuidado os aspectos próprios de cada processo, ainda que se encontrem assoberbados de trabalho na maioria das comarcas brasileiras.

Cita-se, ademais, a atual tendência à aproximação das famílias de direito ocidentais, ou seja, a Common e a Civil Law.[2] São muitos os estudiosos que relacionam ambos os sistemas, sendo suas características opostas muito mais
originárias que atuais.[3] Disso se depreende a atual tendência, por exemplo, no direito brasileiro, à edição de súmulas e à fundamentação de decisões muito mais em precedentes que na letra da lei.

Dessa forma, passa-se a refletir sobre o novo papel do magistrado na ordem constitucional brasileira, principalmente quando se está diante da atuação judicial em matéria penal, a qual pressupõe, como pedra angular, o princípio da legalidade. É importante salientar que os procedimentos de expansão da criatividade judicial em direito penal podem tomar, de acordo com a legalidade e com a farta principiologia que orienta o direito penal clássico, um rumo único, qual seja, o de afastar a aplicação literal da norma apenas em benefício do acusado.

Visando a ilustrar o que foi até agora exposto, cita-se um recente e relevante precedente do Supremo Tribunal Federal, que bem ilustra a interpretação judicial criativa como procedimento de atualização legal, adiantando-se à atuação do Legislativo e visando a corrigir inegável injustiça que seria imposta ao caso concreto com a aplicação literal do dispositivo legal.

A decisão, tomada na Ordem de Extradição n. 893, foi noticiada no site do Supremo Tribunal Federal no dia 10 de março de 2015,[4] e publicada no informativo n. 777 do mesmo tribunal.[5] A turma acolheu questão de ordem suscitada pelo Ministro Gilmar Mendes. No caso, o réu, de nacionalidade alemã, respondia no Brasil por crimes graves, como homicídio e lavagem de dinheiro, encontrando-se há dez anos em cumprimento de prisão preventiva para fins de extradição.

Conforme os dispositivos da Lei 6.815/80, a prisão para fins de extradição deve ser cumprida em regime análogo ao fechado, por tratar-se de prisão processual, não sendo admitidas a liberdade vigiada, a prisão domiciliar ou a prisão albergue artigo 84). Ainda, o estrangeiro condenado por crime cuja pena cominada seja privativa de liberdade só poderia ter efetivada sua extradição após a conclusão do processo, ou após o cumprimento da sanção nele imposta (artigo 89).

Visando a compatibilizar a prisão preventiva com os institutos próprios da execução penal, quais sejam, a progressão de regime e a determinação constitucional que garante ao preso a individualização da sanção, o Ministro Gilmar Mendes apoiou-se em precedentes da Corte para determinar que sejam concedidos ao réu, mesmo que em contrariedade ao disposto na norma infraconstitucional, benefícios próprios do regime semiaberto. Assim foi resumida a argumentação dos Ministros no Informativo já referido:

Dessa forma, se persistisse a prisão para a extradição em todos seus efeitos, o extraditando cumpriria, em regime integralmente fechado, a pena em execução no Brasil. A execução da pena nesse regime reduziria sobremaneira o espaço da individualização da pena. Assim, seria necessário buscar critérios para, na medida do possível, compatibilizar a individualização da pena na execução penal com a extradição. (…) A Turma observou que o juízo da execução estaria limitado pelos termos do título e pelo comportamento superveniente do executado. Não poderia, dessa maneira, inserir o executado em regime mais gravoso do que o da condenação, ou indeferir a progressão de regime àquele que satisfizesse as condições objetivas e subjetivas. Por outro lado, o STF, na qualidade de juízo da extradição, teria condições de avaliar a prisão do ponto de vista de sua necessidade para assegurar a entrega do extraditando e, durante a execução da pena, garantir a ordem pública e a ordem econômica. Diante disso, a prisão para extradição não impediria o juízo da execução penal de deferir progressões de regime. (…) Essa adaptação não seria automática, pois seria necessário observar as balizas do art. 312 do CPP. Além disso, levaria em conta a eventual necessidade da prisão para extradição em regime mais rigoroso do que o da execução penal. Na espécie, a manutenção da prisão para extradição em regime fechado seria desnecessária. (…) Desse modo, na hipótese dos autos, a prisão para extradição deveria ser adaptada ao regime semiaberto. Com isso, o extraditando poderia gozar dos benefícios compatíveis com esse regime, como as saídas temporárias e o trabalho externo. Contudo, essa decisão não impediria o juízo da execução de prosseguir na fiscalização disciplinar do condenado e, se fosse o caso, regredir o regime prisional.

Nesse sentido, o que se vislumbra é a tentativa de adaptar um dispositivo legal ultrapassado, anterior à Constituição brasileira, a ditames hoje consagrados como direitos próprios do indivíduo submetido à execução penal no Brasil, como a individualização da pena. Ademais, ainda que se trate de estrangeiro, este encontra abrigo no caput do artigo 5o, que determina os direitos e garantias fundamentais, bem como é tutelado por uma série de Tratados referentes a direitos humanos, muitos dos quais o Brasil é signatário.

Finalizando essa curta exposição, que tem por fim muito mais despertar o interesse do leitor ao tema da interpretação judicial criativa pro reo em direito penal do que propriamente esgotar ou abordar o assunto de forma minuciosa, agradeço o convite para participar desse promissor projeto, que visa a expandir o debate acerca das ciências criminais, permitindo o acesso a temas relevantes pelo maior número possível de estudantes e juristas desse país. E fico à disposição, não apenas para participar novamente do Canal Ciências Criminais, mas também para responder, via e-mail (chiavelli.falavigno@gmail.com), questões atinentes a esse tema referidas nesse texto ou em minha obra, que aborda outros diversos pontos polêmicos desse instituto.

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[1] MIARELLI, Mayra Marinho; LIMA, Rogério Montai de. Ativismo judicial e a efetivação de direitos no Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2012. p. 16.

[2] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993. Reimpressão, 1999. p. 133/134.

[3] PARGENDLER, Mariana. The Rise and Decline of Legal Families. Disponível aqui. p. 04.

[4] Disponível aqui. Acesso em 26.03.2015.

[5] Disponível aqui. Acesso em 26.03.2015.

Chiavelli

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