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Ciclo completo e a desmilitarização da Polícia

Por Francisco Sannini Neto e Henrique Hoffmann Monteiro de Castro

Não foi por acaso que a Constituição da República conferiu os poderes de prevenção (policiamento e patrulhamento ostensivo) à Polícia Militar, à Polícia Rodoviária Federal e à Guarda Municipal (art. 144, §§12º, 5º e 8º da CF), de um lado, e de repressão (investigação criminal) à Polícia Civil e à Polícia Federal (art. 144, §§12º e 5º da CF), de outra banda. Cuida-se de conquista histórica, que objetiva evitar a hipertrofia de quaisquer das instituições policiais, servindo como contenção ao arbítrio estatal.

A outorga da atribuição precípua de investigar crimes comuns às polícias judiciárias, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, não assusta, porquanto, no âmbito policial, é este o único agente público que faz parte de uma carreira jurídica, como confirmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto; ADI 2427, Rel. Min. Eros Grau; ADI 3460, Rel. Min. Ayres Brito) e pelo legislador no art. 2º da Lei 12.830/13.

Já quanto aos oficiais da Polícia Militar, ainda que tenham formação de grau superior, o STF já deixou claro que suas atribuições não são “sequer assemelhadas às da carreira jurídica” (RE 401243, Rel. Min. Marco Aurelio). O Superior Tribunal de Justiça, de igual forma, sentenciou que a atividade do miliciano “não caracteriza atividade relacionada a carreiras jurídicas” (RMS 26.546, Rel. Min. Benedito Gonçalves). A mesma conclusão atinge os policiais rodoviários federais e os guardas municipais, aplicando-se o brocardo ubi idem ratio, ibi idem jus (onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo direito).

Não por outra razão a doutrina sublinha que todo policial militar, do mais moderno soldado ao mais veterano coronel, é considerado um agente da Autoridade Policial, vale dizer, do Delegado de Polícia. De igual maneira ocorre com o patrulheiro e o guarda municipal (NUCCI, 2010, p. 827; TORNAGHI, 1959, p. 406). Constatação essa que não importa em qualquer demérito para a importante função desempenhada pelos policiais fardados, mas apenas esclarece qual a missão de cada um na persecução penal, colocando cada personagem em seu respectivo lugar (ROSA, KHALED JR., 2015).

Por isso mesmo, o Supremo Tribunal Federal tem assentado a incompatibilidade da Polícia Fardada com a tarefa investigativa, que deve ser presidida pelo Delegado de Polícia (STF, Tribunal Pleno, ADI 2.427, Rel. Min. Eros Grau; STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto).

Vistas essas premissas jurídicas, não se nega que o sistema de Segurança Pública brasileiro, tão combalido pela falta de investimentos, pode ser aperfeiçoado a fim de que consiga maior eficácia na prevenção e repressão à criminalidade. Tanto que há diversas proposições legislativas que almejam esse desiderato.

Nesse campo de ideias, o sucateamento do aparato investigativo estatal é campo fértil para o surgimento de concepções polêmicas e mirabolantes, escoradas num legislador cada vez mais ávido em satisfazer a opinião pública com um Direito de emergência. Algumas propostas, por iniciativa e apoio de parlamentares oriundos da caserna, ignoram a pluralidade de mecanismos de controle social (PENTEADO FILHO, 2012, p. 21) e reduzem o problema da criminalidade à Polícia, mais especificamente à investigação criminal. Com essa visão distorcida, propõe-se que policiais fardados possam investigar civis, como se essa aberração representasse o remédio para todos os males. Com a lente enviesada, enxergam num problema a solução.

É nesse contexto que se desenvolve o presente estudo, que tem o intuito de discutir o famigerado ciclo completo de polícia. Trata-se de modelo no qual as tarefas de prevenção de delitos e investigação criminal se reúnem na mesma Polícia. Isto é, a própria instituição policial responsável pela captura do sujeito em flagrante delito poderia formalizar o termo circunstanciado, auto de prisão ou apreensão em flagrante e toda a investigação ulterior, colhendo provas, decidindo sobre a segregação provisória da liberdade do suspeito e realizando o controle de legalidade da ação policial, coibindo eventuais abusos.

Nota-se que ciclo completo de polícia não pode ser considerado inaceitável por si só. O que é inconcebível é a militarização desse arquétipo, criando uma Polícia Militar com superpoderes, a exemplo do que se pretende com a Proposta de Emenda à Constituição 431/2009.

A monstruosidade de uma investigação criminal presidida por miliciano salta aos olhos. Agride o ordenamento jurídico e o bom senso imaginar um policial fardado, integrante de carreira não jurídica, lavrando autos de prisão em flagrante, fazendo análises sobre tipificação material, concurso de crimes, nexo de causalidade, tentativa qualificada, crime impossível, justificantes e dirimentes, conflito aparente de leis penais, imunidades, erro de tipo, entre outras. O Delegado de Polícia, por outro lado, com profunda formação jurídica e em direitos humanos, carrega na alma o peso da responsabilidade de cercear a liberdade de locomoção alheia.

Não podemos olvidar que a prisão em flagrante constitui um instrumento constitucional de imediata proteção aos direitos fundamentais, proteção esta que é veiculada por meio de uma norma penal incriminadora que estaria sendo violada ou que acabara de ser. Percebe-se, pois, que a restrição de um direito fundamental (liberdade de locomoção) só se justifica pela proteção do direito fundamental contido no tipo penal violado, sendo que apenas uma autoridade oriunda do meio jurídico pode ser capaz analisar as inúmeras circunstâncias que influenciam na caracterização de um crime. Tudo, é claro, com a observância da carta constitucional de direitos e garantias fundamentais do suspeito (cf. SANNINI NETO, 2014).

Justamente por isso, entendemos que não se deve sequer discutir a proposta de ciclo completo antes de se extirpar o militarismo da Segurança Pública brasileira. É dizer: a desmilitarização precede o debate. Aliás, o constituinte originário, quando atribuiu caráter civil à polícia de ciclo completo da União, qual seja, a Polícia Federal (art. 144, §1º da CF), indicou seguir esse entendimento.

Sobre o militarismo, uma visão bastante fidedigna pode ser extraída do estudo confeccionado por um tenente-coronel da Polícia Militar, que, da sua ampla experiência na caserna, constatou que a PM:

“Adota uma posição antagônica com a população. Busca não adquirir o respeito, mas sim impor o medo. (…) Infelizmente não ocorreu, com o fim de regime militar, idêntico fim da doutrina que lhe embasou. (…) Eles estão numa guerra e, nesse contexto, instala-se a lógica da eliminação do inimigo no campo de batalha. Confundem justiça com vingança e esse sentimento norteia suas ações. (…) Eles mesmos assumiram, num só corpo, o papel de juiz, promotor, delegado e advogado. (…) Em um estado democrático de direito, o melhor é ter organizações policiais de caráter civil” (SOUZA, 2012).

Basta um pouco de conhecimento de história do Brasil para saber que militarizar a investigação criminal não é boa ideia. Admitir, em pleno século XXI, a investigação de crimes comuns pela Polícia Fardada, configura verdadeira repristinação do Ato Institucional 5/68 e do Decreto-Lei 898/69, que possibilitavam a condução, prisão e investigação de civis por militares.

Na mesma linha está o entendimento do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, que em 2012, ao aprovar parte do relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre o Exame Periódico Universal (EPU) do Brasil, sugeriu a abolição do “sistema separado de Polícia Militar, aplicando medidas mais eficazes (…) para reduzir a incidência de execuções extrajudiciais”. A Anistia Internacional, quando lançou o panorama do estado dos direitos humanos no mundo (Informe Anual 2014/15), não chegou a conclusão diferente. Em idêntico sentido, a Comissão Nacional da Verdade propôs a desmilitarização das polícias militares estaduais:

“A atribuição de caráter militar às polícias militares estaduais, bem como sua vinculação às Forças Armadas, emanou de legislação da ditadura militar, que restou inalterada na estruturação da atividade de segurança pública fixada na Constituição brasileira de 1988. (…) Torna-se necessário, portanto, promover as mudanças constitucionais e legais que assegurem a desvinculação das polícias militares estaduais das Forças Armadas e que acarretem a plena desmilitarização desses corpos policiais” (Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Vol. I. Pt. V. Conclusões e recomendações. p. 971).

Foi justamente no intuito de evitar a militarização da investigação criminal no Brasil que a Secretaria Nacional de Direitos Humanos editou a Resolução 8/12, buscando, dentre outras coisas, coibir a investigação de crimes comuns pelo Serviço Reservado da Polícia Militar (P2).

Ora, se a sociedade moderna, por meio de organizações internacionais e nacionais de proteção aos direitos humanos, além de juristas, estudiosos das ciências sociais e até mesmo militares, defende que sequer o policiamento ostensivo deve ser feito por instituição militar, com maior razão não pode prevalecer um regime castrense de investigação criminal.

A grotesca ideia de militarizar a investigação criminal esbarra também na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que já condenou o Brasil por esse motivo no Caso Escher e Outros vs. Brasil (data da sentença: 06/07/2009), além de sentenciar no Caso Castillo Petruzzi e Outros vs. Perú (data da sentença: 30/05/1999) que a persecução penal de civis levada adiante por militares rompe com o princípio democrático.

Fácil perceber que o discurso que trata o ciclo completo de polícia como uma panaceia para os problemas da Segurança Pública não consegue camuflar ambições corporativistas dos policiais fardados:

“O debate em prol do ciclo está sendo capitaneado pelos oficiais da PM, suas associações de classe e os seus deputados eleitos. É uma luta dos oficiais da PM travestida de algo que irá beneficiar a sociedade, mas que na realidade irá dar ainda mais poder para o oficialato das corporações. (…) Há questões organizacionais importantes a serem consideradas. As PMs não possuem prática, não têm formação e não têm histórico de investigação de crimes. Via de regra, quando fazem isso, o fazem adotando a violência, a ameaça e a humilhação das pessoas. Para as PMs ter ciclo completo de polícia, elas precisariam mudar radicalmente a sua formação e a cultura organizacional que possuem hoje”(ALCADIPANI, 2015).

Como se não bastasse, vale destacar que mudança dessa natureza significaria flagrante violação ao princípio da vedação do retrocesso (SARLET, 2009, p. 433 e ss). Justificar a ampliação de poderes da Polícia Militar sob a escusa das máculas estruturais das Polícias Judiciárias traduz falácia levada a cabo em prejuízo da franquia de liberdades constitucionais. Como já sustentamos anteriormente:

“A Polícia Ostensiva não tem legitimidade para se tornar órgão persecutório do Estado, por melhor que sejam as intenções. O direito à segurança pública da sociedade não pode ser uma senha para toda sorte de abusos e arbitrariedades” (CASTRO, 2015).

A sanha utilitarista não pode servir de pretexto para que policiais fardados passem a lavrar termo circunstanciado no capô da viatura, conduzir civis para destacamentos militares, ou prender pessoas em flagrante, num retrocesso que jogaria por terra garantias que não foram conquistadas do dia para a noite. Ao amparar-se no enganoso discurso de combate à criminalidade, a Polícia Fardada, pretende promover sua hipertrofia à custa de conquistas históricas. Afinal, é um direito fundamental do cidadão ser investigado tão somente pelo delegado natural. O alerta do Supremo Tribunal Federal vem a calhar:

“É preciso advertir esses setores marginais que atuam criminosamente na periferia das corporações policiais que ninguém, absolutamente ninguém – inclusive a Polícia Militar – está acima das leis” (STF, ADI 1494, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 09/04/97).

É esse, aliás, o espírito de um Estado Democrático e Humanitário de Direito, onde todos devem respeito à lei, não podendo se admitir que a justiça seja feita a qualquer custo, ao arrepio dos direitos e garantias individuais. Sendo assim, toda instituição policial precisa se pautar por essa premissa, afinal, a Segurança Pública é um bem jurídico basicamente instrumental, o que significa que ela não constitui um fim em si mesma, mas um meio através do qual vários outros bens jurídicos são assegurados (v.g. vida, patrimônio, liberdade individual, dignidade sexual, justiça etc.). Toda vez que a Segurança Pública ou outras expressões similares (v.g. Segurança Nacional, Ordem Pública etc.) são colocadas em primeiro plano ou como fins e não instrumentos para assegurar outros bens jurídicos, descamba-se facilmente para o autoritarismo e a violação dos direitos fundamentais na conformação de um chamado “Estado Policial”.

Parece-nos que essa proposta de ciclo completo de polícia, nos moldes propostos pela Polícia Militar, representaria, de fato, um enorme retrocesso para o país, que se distanciaria ainda mais de um Estado que zela pelos direitos e garantias individuais, caminhando na direção contrária dos países mais desenvolvidos. Deveras, há muitas falhas na nossa Segurança Pública e a sensação de insegurança na sociedade é cada vez maior. Contudo, para que tenhamos uma mudança nesse cenário, é preciso que o tema seja discutido de maneira séria, sem qualquer tipo de corporativismo. Mais do que isso. É preciso investimento nas instituições policiais, com melhores salários e condições de trabalho. Esse é o caminho! Para tanto, nossos governantes precisam ousar, mas essa palavra não é a predileta daqueles que estão no poder.

A título de inspiração, encerramos o trabalho com o conselho de CIORAN (2014, p. 42):

“Amemos nossas grandes alegrias e nossos grandes desesperos, mas odiemos mortalmente a inércia, a dúvida e a passividade; odiemos também tudo o que faz diminuir o ardor apaixonado da alma, como também tudo o que impeça nosso absurdo impulso na direção do mundo”.


REFERÊNCIAS

ALCADIPANI, Rafael. A farsa do debate do ciclo completo de polícia. Disponível aqui.

CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Termo circunstanciado deve ser lavrado pelo delegado, e não pela PM ou PRF. 2015. Disponível aqui.

CIORAN, Emil M. O livro das ilusões. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 42.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2012.

ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JR., Salah H.. Polícia Militar não pode lavrar Termo Circunstanciado: cada um no seu quadrado. 2015. Disponível aqui.

SANNINI NETO, Francisco Sannini. Inquérito Policial e Prisões Provisórias. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

SOUZA, Adilson Paes de. A educação em direitos humanos na Polícia Militar. 2012. 156 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1959.


Francisco Sannini Neto é Delegado de Polícia Civil de São Paulo. Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela UNISAL. Professor do Complexo Damásio de Ensino. Professor de graduação e de pós-graduação da UNISAL.

Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é Delegado de Polícia Civil do Paraná, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela UNIESP. Professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná, e Professor Coordenador do Curso CEI e da Pós-Graduação em Ciências Criminais da FACNOPAR.

Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

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