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Crime e espiritualidade


Por Bolívar dos Reis Llantada


Desde há muito tinha vontade de abordar acerca do tema proposto, mas, pelo excessivo tempo que a atividade policial consome, somado à sutileza da matéria, a questão, para ser inserida no “papel”, precisava do time adequado, momento o qual entendemos tenha chegado.

O que nos motivou a abordar sobre a atividade criminosa à luz de uma visão transcendental, diz respeito à visão que a própria sociedade externa sobre nossos irmãos delinquentes, preferindo tratá-los como inumanos, coisas ou animais. Nesse diapasão, não raro, em círculos de conversação, pessoalmente ou através das redes sociais, as pessoas, especialmente ao saber que integramos uma das forças policiais do Brasil, invariavelmente abordam a temática do crime, quase sempre verbalizando a mesma propositura reducionista: “mas não dá para matar um animal desses”? Ao que prontamente devolvo a pergunta: “mas por que você mesmo não o faz?”.

Daí a conversa envereda para um toma-lá-da-cá, onde não raro ouço e leio as seguintes sentenças: “não mato porque o estado não me permite ter uma arma”…ou, então: “eu não podia ser policial, porque, se fosse, não restaria nenhum desses f.d.p.s vivos”…em discurso típico de eugenia social, de “nós contra eles”, de um direito penal do autor, hitleriano…como se o ser humano que descambou para o crime fosse uma criatura de outro planeta, portador de DNA diverso do nosso…

Não quero aqui palmilhar o discursinho batido da pobricização ou do coitadismo, nem ficar “passando a mão na cabeça” deste ou daquele. Contudo, volta e meia me questiono: será que meus interlocutores realmente pensam assim? Será que eles ou elas, de fato, têm vontade de matar, extirpar, esquartejar, trucidar alguém que comete um (ou vários) crime (s)? Ou será que apenas externam um sentimento inato, de repulsa àquilo que macula a vida em sociedade e nos impede de viver em harmonia? Daí porque, creio que a fala dos candidatos a “vingadores sociais” está muito mais permeada de um sentimento de desabafo, do que propriamente de uma dissociação absoluta e não comiserada em face do equivocado agir alheio.

E é aqui que inserimos a questão sob a ótica da espiritualidade. Tentando fugir do lugar comum, ou das duras Leis Hebraicas forjadas por um Deus intransigente e vingativo (que talvez fossem necessárias para o obscurantismo do povo da época), tentaremos verificar a coisa pelo prisma de uma Entidade Suprema mais tolerante e amorosa: por que esse Cara, essa Inteligência Suprema que nos gerou, por que esse Deus permeado de justiça e bondade dar-se-ia ao trabalho de criar seres bons (nós -questionando-se desde logo se seríamos plenamente bons?), e outras criaturas más – eles, os outros, “criaturas-delinquentes”, verdadeiras entidades encarnadas infernais (seriam elas de fato más? nasceram assim? foram irremediavelmente predestinadas com essa chaga moral?)?

Ou será que fomos colocados, todos nós, os “bons” e os “ruins”, no mesmo “saco de gatos”, na mesma sociedade, para nos tolerarmos, para procurarmos entender porque o crime ocorre e por que existem pessoas que o praticam, e procurar resolver essa intrincada equação social e jurídica? Ou, na visão espírita, para tentarmos uma composição ante as ofensas recíprocas do passado, quando então agressores e agredidos são novamente colocados no mesmo plano (e até nas mesmas famílias), para, juntos, aprenderem a perdoar e evoluir?

Confesso que não sou do tipo que fica bajulando ou enaltecendo a conduta do indivíduo que se transviou para a seara do crime; confesso também que, em defesa legítima, entre a minha vida, de uma familiar ou de qualquer um que se ache na triste condição de vítima de delito que atente contra sua vida, não hesitaria em fazer uso da minha pistola ponto 40, a fim de fazer cessar a ação do agressor. Mas também, por ser um adepto da doutrina espiritualista (mais precisamente da espírito-kardecista), já tive inúmeras oportunidades de verificar que o criminoso é alguém de carne-e-osso, igualzinho a nós, com uma gama de defeitos, mas também com apreciáveis virtudes.

Prova disso é que já experimentei a emoção e o privilégio de, em intrincado inquérito voltado à apuração de duplo homicídio, obter a espontânea confissão do suspeito, brotada do âmago do seu ser, simplesmente pelo fato de externar-lhe palavras de conforto e tranqüilidade, ao garantir-lhe que, notoriamente arrependido, poderia fazer a catarse e aliviar o peso da “culpa” acumulada.

Também já obtive relatos de investigados os quais, ainda que informalmente, revelaram sofrer de obsessões as quais os levaram ao cometimento de crimes, necessitando muito mais de tratamento (médico e espiritual) do que propriamente de punição. Nessa sinuosa estrada da apuração da autoria de crimes, onde a vida do inquisidor é, muitas vezes, tão ou mais triste que a do indigitado, já tive a oportunidade de perscrutar vidas as quais, pelo contexto de nascimento e criação, nem nós, os “seres bons”, escaparíamos às tentações da dilapidação do bem jurídico alheio.

Por causa disso tudo, prefiro tratar esses espíritos errantes como irmãos, dando-lhes a medida justa da aplicação da lei, não lhes negando um copo de água, um pedaço de pão, ou uma palavra de conforto. Porque sei que já estão no “inferno”. Porque sei que, presos, nas condições de nossos presídios, permanecerão nas regiões umbralinas, purgando suas faltas até conseguirem libertar-se do nefasto ciclo do desamor que leva à criminalidade. Faço isso por um sentimento inato, talvez calcado em uma crença íntima de que, lá na frente, as condições de vida podem inverter-se, e que não iria gostar nem um pouco de ser tratado como lixo da sociedade.

Bolivar

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