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Defesa técnica e democratização do inquérito policial (III)


Por Eujecio Coutrim Lima Filho


Dando continuidade ao estudo das alterações provocadas pela Lei n. 13.245/16 (veja aqui), segue a análise do inciso XXI, incluído no art. 7º do Estatuto da OAB (Lei n. 8.906/94), conferindo ao advogado o direito de assistir o investigado durante o interrogatório, depoimento e demais elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados podendo, inclusive, apresentar razões e quesitos, expondo-se às consequências da nulidade absoluta.

O cumprimento das garantias constitucionais passa pela efetivação dos direitos relacionados à dignidade da pessoa humana. A defesa técnica eficaz no curso do procedimento investigatório, como consequência de materialização de direitos fundamentais, não se relaciona com uma conduta passiva do defensor (GAVIORNO, 2006). Superado o entendimento de que os vícios ocorridos na fase investigativa consistem em meras irregularidades, tem-se que o embaraço da defesa no depoimento ou interrogatório acarreta nulidade absoluta do ato. Essa mudança legal, com guarida doutrinária e jurisprudencial, se coaduna com a concretização do Estado Democrático de Direito tendo em vista a inegável força da investigação policial em restringir direitos fundamentais do cidadão (CASTRO; COSTA, 2016).

Aury Lopes Jr. (2016), rechaçando qualquer hipótese de relativização da matéria, entende que o interrogatório policial realizado sem a presença do advogado é nulo e não permite a valoração probatória. O citado autor considera adequado formalizar que o interrogatório não pôde ser realizado em razão da ausência de advogado. Nessa direção, há forte entendimento na área da investigação policial no sentido de que, na ausência de advogado constituído, a defesa técnica deve se dar por meio de defensor público (GAVIORNO, 2006).

Na mesma linha, Ruchester Marreiros Barbosa (2016) assevera que a nulidade absoluta se refere ao conteúdo e não à forma. A mera certificação de que o investigado foi informado do direito de permanecer calado não é admitida como aplicação do nemo tenetur se detegere. A presença do advogado passou a ser indispensável à efetivação da não auto culpabilidade, sendo presumido o prejuízo oriundo de sua ausência, salvo quando se tratar de uma confissão qualificada onde o investigado consegue demonstrar elemento em seu benefício. Para ratificar uma prisão em flagrante diante da ausência de advogado ou defensor, o delegado deverá garantir seu direito ao silêncio, não admitindo ou atribuindo ineficaz sua confissão. A manutenção da sua detenção, após a captura, terá como fundamento qualquer outra prova, menos a confissão” (BARBOSA, 2016).

De outro lado, Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Adriano Sousa Costa (2016) entendem que a nulidade emana da prerrogativa do causídico e não da falta de defesa técnica a todo e qualquer investigado. Igualmente, Sannini Neto (2016) assegura que no caso em debate a nulidade decorre do cerceamento de uma prerrogativa do defensor e não em decorrência da ausência de defesa. Como primeiro garantidor de direitos fundamentais, o Delegado de Polícia deve informar ao depoente ou interrogado a respeito de seus direitos constitucionais, em especial o de ser acompanhado por um advogado. Neste contexto, o interrogatório ou até mesmo o indiciamento poderá ocorrer sem a assessoria do advogado.

Ainda é prematuro afirmar qual dos posicionamentos prevalecerá nos tribunais. Contudo, é necessário esclarecer que no caso em tela a intenção do novel diploma legal foi disciplinar direitos conferidos ao advogado no âmbito do art. 7º do Estatuto da OAB. A exigência em comento se refere a uma prerrogativa do defensor e não do investigado de forma que, no âmbito da Lei 13.245/16 que expressa a discutida causa de invalidade, o papel do Delegado de Polícia é permitir o exercício de tal direito, sob pena de nulidade absoluta do ato. No entanto, é preciso destacar que, a assistência do advogado é garantida como um direito fundamental do “preso” desde 1988 (art. 5º, LXIII, CRFB). Apesar disso, até o momento, os tribunais não tem se manifestado pela nulidade absoluta do ato investigativo realizado sem a presença do advogado ou defensor (HC n. 139.412/SC, 6ª Turma do STJ).

Entretanto, o exercício de conformação entre o sigilo da investigação e os direitos fundamentais positivados no art. 5o, LXIII e LXIV, da CRFB, permite afirmar que o acesso aos autos da investigação criminal é uma garantia do imputado (investigado indiciado ou não). Então, a novidade trazida pela lei que alterou o Estatuto da OAB diz respeito tão somente à garantia de um direito do advogado (BARBOSA, 2016). De tal forma, Sannini Neto (2016) propõe que regra semelhante, com tutela mais abrangente que a prerrogativa do advogado, seja acrescida ao CPP como um direito do investigado, principalmente no interrogatório (atualmente visto também como instrumento de defesa).

Portanto, verifica-se que, em consonância com os dispositivos constitucionais supramencionados, a oitiva do suspeito no âmbito do inquérito policial possui natureza de interrogatório. É um ato formal de natureza mista: meio de prova e meio de defesa (fortalecido com o advento da Lei n. 13.245/16), devendo-se aplicar as regras do “interrogatório do acusado” previstas no CPP. Como autodefesa, o investigado tem direito de participar do ato e conservar-se silente (sem lhe acarretar prejuízo), apontar provas ou confessar, “adotando-se o art. 187 do CPP, que prevê um procedimento para o interrogatório e que se divide em interrogatório de individualização (§1º) e em interrogatório de mérito (§2º), por força do art. 6º, V, do CPP” (BARBOSA, 2016).

A nulidade absoluta decorrente da violação do art. 7º, XXI, do Estatuto da OAB, diz respeito não apenas ao interrogatório ou depoimento, mas também aos demais elementos investigatórios e probatórios derivados, direta ou indiretamente. As provas e demais diligências realizadas a partir de elementos colhidos com o citado vício também serão consideradas nulas. Conforme regra já prevista no art. 573, §1o, do CPP, o legislador inovou adotando a teoria da prova ilícita por derivação (frutos da árvore envenenada) na fase investigativa. Contudo, em consonância com o art. 157, §§ 1º e 2º, do CPP, não serão consideradas ilícitas por derivação aquelas provas que não guardam nexo de causalidade com as outras ou que poderiam ser obtidas de forma independente.

Tendo em vista o atual momento do sistema processual penal brasileiro, que já enfrenta obstáculos na concretização de direitos e garantias individuais, a relativização dessa determinação de nulidade precisa ser vista com reservas (NUCCI, 2015). As regras de proibição da prova ilícita em desfavor do acusado devem ser mantidas, ressalvada a hipótese de conflito constitucional, os princípios não são absolutos e muitas vezes dependem de um mandado de otimização.

Outro ponto que merece destaque em relação ao art. 7º, XXI, “a”, do Estatuto da OAB, é a oportunidade conferida ao advogado em apresentar razões e quesitos que podem ser formulados durante o interrogatório, depoimento ou declaração, bem como no decorrer das investigações. Além de assistir o cliente, tal prerrogativa garante ao advogado justificar fatos e elaborar perguntas que colaborem com as investigações, desde que admitidas pela Autoridade Policial. O ato deve ser dirigido pelo Delegado de Polícia a quem incumbe formular as perguntas que entender pertinente e relevante (CASTRO; COSTA, 2016).

Ao contrário da fase processual, onde as perguntas são inquiridas diretamente pelas partes, na fase do inquérito policial as perguntas devem ser realizadas por meio da Autoridade Policial que pode indeferir, de forma fundamentada, as perguntas (quesitos) formuladas pelo advogado, devendo registrar o ato. O art. 14 do CPP permite que o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado requeiram diligências (por escrito, nos termos do art. 9o do mesmo diploma legal), que será realizada, ou não, a juízo da autoridade que decidirá fundamentadamente.

A Lei n. 13.245/2016 também tentou inserir a alínea “b” ao art. 7o, XXI, do Estatuto da Advocacia, permitindo ao advogado requisitar diligências no curso das investigações. Tal dispositivo foi acertadamente vetado tendo como razão a possibilidade de uma interpretação equivocada no sentido de que tal requisição teria caráter mandatório. Ademais, tem-se que semelhante interpretação já fora afastada pelo STF no bojo da ADI 1127/DF. Portanto, como visto, permanece a possibilidade de indeferimento fundamentado das perguntas ou diligências por parte da autoridade investigativa.

Neste ponto, oportuna as lições de Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Adriano Sousa Costa (2016):

“Do mesmo modo, o MP não pode requisitar diligências enquanto a investigação ainda está transcorrendo, sob a presidência exclusiva do Delegado de Polícia. Afinal, deve requisitar, após a remessa do IP relatado pela Autoridade Policial, apenas as diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia (art. 16 do CPP).”

A apresentação de quesitos prevista na lei diz respeito, essencialmente, aos quesitos periciais. O contraditório continua de caráter diferido quando se tratar de prova não repetível (o art. 159, §5º, II, do CPP, se refere à indicação de assistente técnico no processo judicial). Entretanto, por se tratar de um contraditório diferido, as provas irrepetíveis revelam uma verdade mitigada, motivo pelo qual, desde que seja possível, o contraditório prévio se mostra como garantidor de uma verdade eticamente construída (BARBOSA, 2016). O contraditório prévio deve ser a regra para um contraditório eficaz, a sua postergação deve ser excepcional e devidamente fundamentada (GRECO, 2016).

Deste modo, conciliando o estudo com a regra do art. 14 do CPP, o advogado poderá apresentar ao Delegado de Polícia razões fundamentando eventual desindiciamento ou um futuro pedido de arquivamento pelo Ministério Público ao Poder Judiciário (LOPES JR. 2016). Destarte, após análise técnico-jurídica do fato como garantido pelo art. 2o, §6º, da Lei 12.830/13, a Autoridade Policial concluirá pelo indiciamento (ou não) apontando a autoria, materialidade e circunstâncias do fato.


REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ruchester Marreiros. Lei 13.245/16 exige mais do que o advogado na investigação criminal. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.

CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro. COSTA, Adriano Sousa. Lei 13.245/16 e a participação do advogado no inquérito policial. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.

GAVIORNO, Gracimere Vieira Soeiro de Castro. Garantias constitucionais do indiciado no inquérito policial: controvérsias históricas e contemporâneas. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direitos e Garantias Constitucionais) – Faculdades Integradas de Vitória, Vitória, 2006.

GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo. Disponível aqui. Acesso em: 1º de abril de 2016.

LOPES JR., Aury. Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter “inquisitório” da investigação. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014.

SANNINI NETO, Francisco. Lei 13.245/2016: contraditório e ampla defesa na investigação criminal?. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.

Eujecio

Eujecio Coutrim Lima Filho

Delegado de Polícia Civil (MG) e Professor

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