ArtigosDireito Penal de Trânsito

Delitos de trânsito e dolo eventual

Por Karla Sampaio

O Tribunal do Júri, instituição arraigada em nossas tradições jurídicas, reveste-se de incrível apelo, desde a sua origem, os seus propósitos e o seu cunho eminentemente democrático. Trata-se, em brevíssima e primeira instância, de um procedimento em que pessoas comuns, do povo, nem sempre de reconhecido saber jurídico, irão proferir suas convicções íntimas e morais sobre a condenação ou absolvição em casos de crimes dolosos contra a vida. São eles, o homicídio, o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, o infanticídio e o aborto, tanto na forma tentada como na consumada, além de seus delitos conexos. Nessa esteira, o agente que retira a vida de outra pessoa com esse específico dolo, que pode ser direto ou eventual, será julgado pelo colegiado popular.

Ocorre o dolo direto quando o agente quer especificamente a morte de uma pessoa: ele age pontual e diretamente para isso. O dolo na forma eventual, por sua vez, existe quando o agente não quer diretamente a morte de alguém, mas consente com a possibilidade de ocasioná-la. Em geral, costuma-se falar que no dolo eventual existe a consciência da possibilidade da morte, mas não há a intenção objetiva prevista no dolo direto: diz-se que o causador “deu de ombros”, isto é, egoisticamente aceitou a morte e não deixou de agir mesmo que ela pudesse ocorrer.

Crimes culposos, de outra banda, não são da competência do tribunal do júri e recebem apenamento menor. Mas, apesar dessa diferença, a culpa consciente ainda guarda semelhanças com o dolo eventual. Mas apesar da tênue dissonância, seus resultados são amplamente divergentes.

Diz-se da culpa consciente quando o agente, em que pese também tenha noção da possibilidade do resultado morte, de maneira alguma aquiesce com o resultado fatal. Pelo contrário: se tiver a certeza da morte, sequer dará início à sua ação. Ele vislumbra a possibilidade de que ocorra uma fatalidade, não deixa de agir, mas em momento algum a aceita ou com ela consente.

Essa diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente se mostra primordial, especialmente quando se trata de homicídios ocorridos na direção de veículo automotor. Veja-se que não há o menor sentido em imaginar uma pessoa consentindo com um grave acidente, sobretudo porque ela estaria aceitando sua própria desgraça. Entretanto, muitos são os casos de homicídios no trânsito levados a júri popular: ou por velocidade acima do permitido ou por uma ultrapassagem em local proibido. Há casos levados a júri tão só em função de alguma desobediência à sinalização, como se tais circunstâncias fossem suficientes para demonstrar ter o motorista agido em descaso, aceitando a morte de uma pessoa.

Com efeito, absurdos e equivocados tais entendimentos!

Imagine-se a situação do motorista que, em velocidade excessiva, bate seu carro e mata uma pessoa por atropelamento. É claro como a luz solar que este motorista também gerou risco à sua própria vida, sem contar os prejuízos materiais ao seu patrimônio. Entretanto, inadvertidamente, situações como estas têm chegado ao Poder Judiciário caracterizados como homicídios dolosos. Vale dizer, como se o motorista, ao exceder na velocidade, absurdamente houvesse consentido com o próprio acidente, aceitando e buscando tanto o risco à própria vida como a morte da vítima. Ora, trata-se de verdadeira aberração, porque afirmar este consentimento é o mesmo que bradar o consentimento do agente também quanto ao seu próprio infortúnio.

Nestes lindes, é remansoso haver tão-somente culpa consciente em se tratando de delitos de homicídio de trânsito. É claro que pode ocorrer a visualização de um possível acidente, daí porque se fala em consciência da culpa, mas apontar a egoística aceitação do evento morte é um exagero que não se pode aceitar. Salvo se o agente fizer do automóvel um instrumento para matar certa pessoa – assim como poderia fazê-lo com uma faca ou um revólver –, é inadmissível conjecturar-se o dolo eventual em delitos de homicídio ocorridos no trânsito. Mais ainda: trata-se do mais pleno absurdo submeter tal motorista ao crivo do colegiado popular, competente para julgar os delitos realmente dolosos contra vida, equiparando-o àqueles que real e voluntariamente matam seus pares.

Hoje em dia basta que nos sentemos à direção de um veículo automotor para gerar qualquer tipo de risco, tanto a nós como a outras pessoas. Mas é preciso muito mais do que isso para ser submetido a júri popular.

KarlaSampaio

Karla Sampaio

Advogada Criminalista e Bacharel em Administração de Empresas. Especialista em Direito Penal e Direito Penal Empresarial, com atuação no RS e nos Tribunais Superiores, em Brasília.

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