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Diário de um agente penitenciário: canibalismo e outros rituais na cadeia

Por Diorgeres de Assis Victorio

“Como justamente observa Jiménez de Asúa nas mais belas e sugestivas páginas da sua Psicoanálisis criminal, os investigadores provaram que a prisão mata espiritualmente o homem, destrói nêle (sic) tôda (sic) mola ativa e tôda (sic) reação útil para a vida em comum, e empurra pelas suas portas, ao têrmo (sic) da pena um pobre indivíduo desalentado e radicalmente estéril para a comunidade, ou um ser mais rancoroso, mais inadaptado, mais agressivo que o que entrou na penitenciária. Segundo as observações de Sieveres, deduzidas do estudo de memórias de reclusos, a psique do condenado conserva, ainda que retorne à vida livre, perniciosos resíduos deformantes, que se podem sintetizar nos seguintes >incapacidade de concentração, debilidade da memória, ilusionismo fantástico, insatisfação da vida afetiva, defeitos no domínio de si mesmo, diminuição do impulso de sociabilidade, falta de alegria no trabalho, ausência de decisão e de vontade. O liberado manifesta, por êstes (sic) sinais de conduta, deficiências ou deformações psicológicas que afetam a atenção, a memória, a imaginação, o sentimento, a vontade, todo o seu mecanismo psicológico. Com razão são chamados “homens rotos” (FUNES, Mariano Ruiz. A crise nas prisões. 1953, p. 118)

Tomei conhecimento através dos meios de imprensa que um preso teria sido vítima de canibalismo, relato esse prestado na CPI do Sistema  Carcerário, instalada na Câmara dos Deputados, onde um servidor teria informado que houvera dois casos dentro do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luis, mortes essas por integrantes da facção criminosa[1] “Anjos da Morte” (também chamada de ADM). “Os criminosos diante de seus anseios e demandas e pressionados pelo Estado, que “tenta” conter a criminalidade, foram obrigados a buscar outros caminhos, e a cada vez mais se organizarem em busca de sua estruturação. Com o intuito de tornar o crime “organizado”, os bandidos procuraram inserir as suas nefastas e maléficas raízes primárias de cunho criminal, em uma localidade em que seus entes apresentassem “qualidades”, muito favoráveis à sua assimilação. Qual o local que apresenta condições vantajosas, fatores preponderantes, sendo muito propício para a inserção da ideologia criminal? Esse lugar é a prisão!”[2].

Esse fato me fez recordar do ano de 1995 quando tomei conhecimento da existência do “Partido do Crime”, o que em uma outra oportunidade tratarei aqui, assim como também tratarei das outras mais de vinte e seis facções criminosas que efetuei estudos bem interessantes, tendo em vista que muitas delas possuem os seus regulamentos de conduta criminal, ou seja, seus “Estatutos”.

Mas deixemos para lá o “Partido do Crime” e passemos a tratar um pouco sobre a facção “Anjos da Morte”. Estudos de criminologia penitenciária nos mostram que essa facção criminosa teria surgido de um desmembramento da facção criminosa Primeiro Comando do Maranhão e do “Bonde dos 40”, sendo que essas facções criminosas surgiram quando das transferências de presos para o Maranhão onde se baseando na doutrina propagada pelo “Partido do Crime” e outras facções criminosas resolveram fundar uma organização ao espelho das mesmas. A ADM é uma facção muito violenta, relata um agente penitenciário que o preso teria sido desossado e que seus pedaços foram colocados em sacolas e distribuídos. Foi cozinhado na água com sal para evitar o odor e alguns órgãos como rins, fígado, coração foram comidos em rituais dessa facção.

O mais estranho é que os agentes relatam que não há nenhum inquérito sobre casos de decapitação ocorridos em 2009, 2011 e 2013.[3]

Por muitos anos fui zelador do Raio II. Recordo-me que nesse local existia uma facção criminosa chamada de Seita Satânica, a mais antiga facção criminosa do sistema prisional[4], surgiu nos anos 70, na antiga Casa de Detenção de SP.

Eis o Estatuto da Seita Satânica:

  • Que na verdade a justiça infernal reine sempre em nossos corações.
  • Porque na verdade justiça infernal é inviolável em toda a superfície do universo.
  • Nas profundezas do fogo, nas profundezas da terra, e nas profundezas do mar, e no espaço infinito, sempre para a glória infernal”

Ao iniciar a liberação do pátio para banho de Sol, ao ir liberar a cela dos membros da Seita Satânica[5], me recordo que eu costumava falar “bom dia” a todos os presos só que quando fiz isso com eles fui advertido pelos adoradores de Lucifér[6], me disseram: “- Mestre não é bom dia não!” Estranhei e perguntei como que não era bom dia era o que então? Disseram que: “-É mal dia”. Então eu disse mal dia então. Nisso comecei a entender e querer estudar mais ainda os membros dessa “facção criminosa religiosa”.

Observei que a cela tinha um cheiro estranho, algo de podre estava lá dentro, olhei com muita atenção no interior da mesma para ver o que aquela cela tinha de diferente das demais. Nela existiam cruzes pintadas de cabeça para baixo em cores vermelhas, que depois descobri que eram feitas com sangue de animais e etc.

Usavam roupas pretas e eram os “faxinas” (presos que fazem a limpeza) do Raio. Não se misturavam aos outros presos, conviviam com membros do “Partido do Crime” sem que ocorressem problemas. Eram temidos não só pelos agentes penitenciários, mas também pela população carcerária, ninguém via outros presos dentro das celas dos mesmos, assim como não os viam em celas de outros presos, viviam isolados.

Ao liberar todas as celas e retornar para a o local onde eu ficava, veio até mim um preso da Seita Satânica e me disse que necessitava ir à Enfermaria fazer um curativo e mostrou sua mão. A palma de sua mão estava queimada e perguntei ao mesmo o que tinha acontecido[7]. Ele me disse que Lucifér tinha aceitado de bom grado a oferenda e que eles tinham por hábito queimar suas mãos porque o cheiro da carne humana queimando é o “Néctar de Lucifér”. E como tinha queimado bastante ele teria gostado muito. Nisso fiquei muito curioso e disse para ele que todo mundo que botasse a mão no fogo ia queimar mesmo, que não tinha nada de anormal para caracterizar que Lúcifer tinha gostado. Ele me disse que: “- Tem que queimar mesmo. Tem que ter o cheiro de carne humana queimando é o ritual que é assim”. Questionei-o quanto ao fato dele queimar a própria mão e depois ter que fazer curativo. Ele me disse que: “-A mão tem que sarar para que depois seja feita uma nova oferenda queimando outra vez, porque imagina só se a gente queimar a mão e não curar, aí acaba a mão, aí a gente queima o braço e também não cura, aí fica sem braço também e como que a gente vai fazer oferenda senão tem mais o que queimar?” Não tive outra alternativa a não ser concordar com o raciocínio dele. Levei o mesmo à enfermaria e o curativo foi feito. Tinham também por hábito quando do ritual de iniciação de um novo membro adorador cortar a ponta dos dedos “minimos”.

Ao final da tarde resolveram fazer uma “blitz” (revista) nas celas dos mesmos, mas observei que os agentes não entravam na cela, puseram os presos para o lado de fora deixando só um para acompanhar a revista, mas ninguém entrava para revistar, eu tive que entrar e comecei a fazer a revista, nisso mais um funcionário entrou na cela e mais ninguém. Ao deitar em baixo da “jega” (cama) observei que haviam garrafas plásticas cortadas pelo meio com um líquido vermelho. Eu cheirei e senti um cheiro podre, era sangue que eles guardavam para seus rituais satânicos, nem quis saber sangue de onde era. Nada de “anormal” foi encontrado na cela. Os funcionários foram embora, eu tranquei a cela e desejei aos mesmos uma “Péssima Noite” (eu já tinha entendido a sistemática da Seita). Mais que rapidamente me disseram: “- O mestre ao senhor também, que sua noite seja repleta de tristezas, dor, lamentações e muito sofrimento e que Lucifér o acompanhe quando retornar a sua casa e que o senhor tenha uma péssima noite de sono, com muitos pesadelos”. Só pude agradecer e desejar o mesmo a eles.

Observei que eles tinham por hábito vir conversar muito comigo, e quando chegavam as pessoas que ali estavam iam embora. Na verdade queriam diálogos, talvez arrumar novos membros e observavam que eu gostava de questionar eles sobre a vida deles no cárcere. Muitos presos me falavam para eu não me aproximar deles porque eu poderia sofrer uma maldição, os presos evangélicos do Raio então ficavam desesperados e me pediam para tirá-los do Raio eu explicava que eles eram que nem eles, que eram religiosos. Eles faziam o sinal da cruz e iam embora para as celas.

Essa é umas das histórias que me recordo da Seita Satânica, a mais “impressionante” de todas as facções criminosas que tive a oportunidade de conhecer dentro do cárcere.

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[1] Ao observar as facções criminosas no cárcere constatei  que esses grupos apresentam algumas características em comum que são: grande poder intimidativo; distribuição de tarefas; visam o lucro (a qualquer custo); possuem um sistema piramidal hierárquico (aqui podemos verificar a existência da Teoria do Domínio do Fato de de Claus Roxin), simbiose com o Estado (envolvimento criminógeno; corrupção).

[2] VICTORIO, Diorgeres de Assis. PCC como organização criminosa. In: Seminário De Direito Penal IBCCRIM/OAB Pindamonhangaba.

[3] Disponível aqui. Acesso em 19 de julho de 2015.

[4] Equivoca-se Roberto Porto em sua obra “Crime organizado e sistema prisional”, ATLAS, São Paulo, 2008, p. 84-85, quando afirma que a facção mais antiga seria a Serpente Negra criada em 1984 e que a Seita Satânica surgira em 1994. Quando ingressei como agente de segurança penitenciária em 1994 já tomei conhecimento por agentes bem mais antigos do que eu que a Seita Satânica era a mais antiga de todas e que teria surgido nos anos 70.

[5] Muitos funcionários quando iam trabalhar comigo no Raio II me pediam para não ficarem com as chaves do lado da cela dos membros da Seita Satânica, pelo fato de temerem os adoradores do Diabo.

[6] Eles não falavam Lúcifer e sim Lucifér.

[7] Eu sabia que alguns presos sofriam torturas de outros presos quando eram extorquidos e eu quis saber se ali o que ele me mostrava era oriundo de alguma tortura, alguma extorsão.

_Colunistas-Diorgeres

Diorgeres de Assis Victorio

Agente Penitenciário. Aluno do Curso Intensivo válido para o Doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Penitenciarista. Pesquisador

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