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Diário de um agente penitenciário: reformar os presídios é a solução?

Por Diorgeres de Assis Victorio

O Estado, eis como se denomina o mais frio de todos os monstros. Frio até na mentira e esta é a mentira que brota de sua boca (sic): Eu, o Estado, sou o povo…” Nada há maior sobre (sic) a terra: Eu sou o chamado ordenador de Deus. Nêle (sic) tudo é falso, morde com os dentes roubados, o mordaz… O Estado está aonde, bons e maus, todos se embriagam com o veneno: onde todos se descaminham: onde um suicídio lento e universal tem êste (sic) nome: “a vida”- assim escreve Nietzche (…) pois nada é o estado do que “a soma das negações de todos os seus membros”, agente por excelência da exploração e da opressão, negação flagrante da humanidade. É o estado o destruidor da verdadeira sociedade, de que deve ter como liame da vida coletiva o instinto de sociabilidade, de solidariedade e de auxílio mútuo, instinto natural ao homem e mais necessário à permanência das espécies do que o instinto da luta pela vida. Desembaraçado da impertinência dos laços religiosos ou morais, o cínico florentino sustenta a razão de estado, ou seja a supremacia absoluta da vontade do chefe do estado, a quem tudo é permitido, e daí o dever supremo de lançar mão até da mistificação, da mentira, do suborno (sic), da traição, da falsidade, do disfarce, da hipocrisia, dos mais hediondos crimes, a fim de obter os seus desígnios pessoais, cuja consecução não deve encontrar barreiras. Eis a origem da regra política: o fim justifica os meios. São suas palavras textuais: “O príncipe não pode observar todas (sic) aquelas coisas pelas quais são tidas como bons homens; freqüentemente (sic), para manter o estado é obrigado a obrar a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. Importa ter ânimo disposto a dirigir-se segundo o obrigam os ventos e as variações da fortuna; não se afastar do bem, podendo; mas, saber enveredar pelo mal, se for preciso” (NOGUEIRA, Ataliba. O Estado é meio e não fim. Saraiva. São Paulo: 1955, p. 8 e ss, grifo nosso)

Lamento já informar que, devido à magnitude da importância desse tema, não será possível fazer esse artigo em somente uma parte.

O artigo dessa semana visa a analisar, sob uma ótica diferente (interdisciplinaridade), a decisão do dia 13 de agosto de 2015 do STF (RE 592581) com Repercussão Geral, que estabeleceu que o Poder Judiciário pode, sim, determinar obras ou reformas emergenciais em presídios, tendo em vista garantir os direitos fundamentais dos presos, como sua integridade física e moral, tendo em vista que os Direitos Fundamentais da pessoa humana são previstos em normas de eficácia imediata e constituem o chamado mínimo existencial, não podendo ser suplantado pelos direitos patrimoniais do Estado.

Mister se faz mencionar que há norma no DEPEN/MJ (Departamento Penitenciário Nacional- Ministério da Justiça) que versa sobre construção, ampliação e reformas de Unidades Prisionais, chamada de Plano Diretor do Sistema Prisional, onde apresentam um total de 22 metas. Criado em 2008, apresenta na meta 20 a ampliação do número de vagas (construção, ampliação ou reforma, com o objetivo de elevar o número de vagas aos encarcerados. Já a meta 22 trata da mulher presa e egressa com adesão a projetos destinados a assistência para a mulher presa e egressa.

Um levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), ligado ao Ministério da Justiça, aponta que nos últimos dez anos 15 estados e o Distrito Federal deixaram de usar R$ 187 milhões liberados pelo governo federal para construir e reformar presídios.[1] Verificamos assim que não há interesse dos Estados em ao menos “minimizar” a problemática do sistema penitenciário, preferindo assim jogar a sujeira para debaixo do tapete, afinal de contas, ninguém sabe o que acontece atrás dos muros da prisão não é mesmo?

Quando iniciei em 1994 como agente de segurança penitenciária, sempre vi na Unidade Prisional onde trabalho e em outras diversas que tive a oportunidade de conhecer, reformas e adaptações na arquitetura penitenciária, via de regra sempre feitas por funcionários, que são marceneiros, soldadores, pedreiros, eletricistas e etc., porque presos que trabalham em obras dessa natureza, não são bem vistos pela massa carcerária. A reclamação desses servidores nesse mais de 20 anos sempre foi que, quem “constrói” as cadeias não conhece nada de cadeia e quando eles terminam as obras (muitas delas nem terminadas, feitas a título de pura “politicagem”, são inauguradas e a “batata quente” é largada em nossas mãos, como por exemplo, portas não fecham, infiltrações, o sistema de água não funciona e etc) e o pior de tudo não há uma fiscalização dessas obras. São entregues a “toque de caixa”, claro, graças à política de encarceramento em massa, afinal de contas para o Estado e para a sociedade não são Unidades Prisionais e sim depósitos de pessoas (…) “Dostoiewski aplicou à prisão em geral, chamando-a de casa dos mortos ou sepulcro dos vivos[2]

Isso me faz lembrar uma frase do Alvino “Hoje o preso está contido, mas amanhã estará contigo”. A sociedade se esquece disso, não se preocupa com a situação carcerária, e diz “Isso não é um problema nosso, é do Estado”.

Devido a sua importância, sempre cito nos artigos a problemática quanto à prisionização e a despersonalização. Vi nas prisões presos estarem bem mentalmente, e de uma hora para outra, surtam e tem que serem trancados em cela especiais (com paredes revestidas com madeira para não se matarem, com cabeçadas e etc.) e ficam ali até que seja determinado por um juiz a sua transferência à um Hospital de Custódia (muitas vezes convertida a pena de prisão em medida de segurança, mas isso não é do dia para a noite e enquanto isso permanece o preso em um local impróprio). Vi presos comendo fezes, adotando ratos e aranhas como animais domésticos.

Mas por que isso acontece?

“Ferri considera a cela como um fator predisponente para as psicoses (…) que a única dedução que se pode obter dela é a de que o isolamento contínuo destruiu a psicose do recluso, da mesma maneira que acontece nos manicômios, onde a adaptação pacífica do enfêrmo (sic) ao regime de separação individual se considera como o sintoma seguro do trânsito para o estado crônico de demência[3]. Nunca é de mais frisar que segundo observações “ (…) deduzidas do estudo de memórias de reclusos, a psique do condenado conserva, ainda que retorne à vida livre, perniciosos resíduos deformantes, que se podem sintetizar nos seguintes: incapacidade de concentração, debilidade da memória, ilusionismo fantástico, insatisfação da vida afetiva, defeitos no domínio de si mesmo, diminuição do impulso de sociabilidade, falta de alegria no trabalho, ausência de decisão e de vontade. Muitas outras conseqüências a prisionização pode gerar, não somente aos presos, mas também aos agentes penitenciários e outros que laboram naquele local.[4]

Muitos leitores agora devem estar se perguntando “Qual a relação da prisionização com a arquitetura penitenciária, com as reformas das Unidades Prisionais?

Ora, a personalidade do indivíduo vai se estruturando, ou seja, vai se definindo, vai adquirindo sua identidade exatamente por meio da relação com o meio externo, ou seja, com o espaço. O indivíduo se define, vai aos poucos “moldando” sua identidade no espaço, na relação com os objetos que ele integra. E é o espaço que vai lhe oferecer os objetos e fenômenos equivalentes aos seus referenciais internos, fenômenos esses nos quais ele vai se projetar, com os quais ele vai se identificar. O indivíduo projeta na estrutura do espaço a sua própria estrutura psíquica (…). Por outro lado, se existe uma relação profunda de equivalência entre o espaço e a estrutura psíquica, entre o tempo e a dinâmica psíquica, é certo que determinadas características do espaço e do tempo vão suscitar determinadas vivencias psíquicas, vão levar o indivíduo a reviver experiências pregressas suas. Sendo assim (…) irá interferir em seu modo de ser, ou, ao menos irá reforçar determinados tipos de conduta e determinadas formas de interpretação do meio. Ela será tanto mais intensa e criará sulcos tanto mais profundos, quanto maior for o isolamento, e quanto maior for a pena.[5]

Semana que vem daremos continuidade a esse artigo.

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[1] Disponível aqui. Acesso em 16 de agosto de 2015.

[2] FUNES, Hilário Veiga Carvalho. São Paulo. Saraiva: 1953, p. 72

[3] Ibidem, p. 74 e ss.

[4] SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 110 e ss.

[5] Ibidem, p 125.

_Colunistas-Diorgeres

Diorgeres de Assis Victorio

Agente Penitenciário. Aluno do Curso Intensivo válido para o Doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Penitenciarista. Pesquisador

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