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Direito Penal Econômico e o princípio da taxatividade


Por Adriane da Fonseca Pires


Depois de um período de afastamento devido a férias, esta colunista retorna com a proposta de destacar questões debatidas por parte da dogmática penal no que se refere à expansão do direito penal em matéria de criminalidade econômica, especificamente na forma diferenciada de tratamento a ser dada àquela em comparação à criminalidade comum. Na coluna de hoje são feitos apontamentos sobre o princípio da legalidade nos crimes econômicos, sob o viés da taxatividade.

O princípio da legalidade dos delitos e das penas, exigência de cunho político advinda do Liberalismo, é reconhecido como mecanismo de defesa do cidadão por se afigurar como limite ao poder estatal (de um Estado Social e Democrático de Direito). Desdobra-se, segundo a doutrina, em três outros princípios, quais sejam, “o da reserva legal – lei como fonte das normas penais incriminadoras; o da determinação taxativa – enunciação dessas normas, e o da irretroatividade – validade das disposições penais no tempo” (LUISI, 1991, p. 13). Assim, a legitimação da intervenção penal assenta-se na diferenciação necessária entre o punível e o impunível, exigindo-se que as normas incriminadoras e que atinjam fatos cometidos após sua vigência.

Conforme leciona Faria Costa (2007, p. 16 e 20-21), o direito penal constitui-se em uma ordem relacional que tem um fundamento (relação comunicacional de raiz onto-antropológica na relação de cuidado-de-perigo o que leva à conclusão de que o crime exsurge da perversão dessa relação); uma finalidade (realizar a justiça  penal porquanto se trata de um ordenamento de paz); um sistema (com dois eixos normativos – fragmentariedade e unidade lógica e intencional da dogmática) e uma função (proteção de bens jurídicos com dignidade penal). Para Scalcon, “trata-se de uma proposta de fundamentação não apenas ontológica (a partir do ser) nem somente antropológica (a partir do homem), mas onto-antropológica (a partir do ser do homem, isto é, da sua ontológica condição existencial)” (SCALCON, 2013, p. 47-49).

Nessa linha, sintetiza D’Avila que a concepção acima é “percebida através do modelo de crime como ofensa a bens jurídico-penais atribui ao ilícito uma posição privilegiada na estrutura dogmática do crime, eis que portador do juízo de desvalor da infração enquanto elemento capaz de traduzir a própria função do direito penal” (D’AVILA, 2009, p. 50).

Em sendo o Direito Penal Econômico, “o conjunto de normas penais que protegem a ordem econômica, vista essa como a regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e serviços” (BAJO  e  BACIGALUPO, 2001, p. 13-14), conclui-se que “o saber econômico não instrumentaliza o direito penal, mas sim ilumina seu horizonte cognitivo a fim de que o poder punitivo tenha condições de criminalizar somente aquelas práticas que se considerem ofensivas a uma política econômica” (SCHMIDT, 2015, p. 80). Na mesma perspectiva prossegue Schmidt:

“através dos crimes econômicos, o direito penal pode proteger, com dimensão variável, em cada ordenamento jurídico, segmentos específicos dessas estratégias (política econômica stricto sensu, monetária, fiscal, financeira); [de modo que] a legitimidade do direito penal econômico, portanto, será tão maior quanto mais próximo e ajustado for o tratamento legislativo e judicial conferido a normas e supostos fáticos materialmente e ofensivos à ordem econômica” (Schmidt, 2015, p. 82 e 121).

Diante de argumentos doutrinários que defendem um redimensionamento principiológico para os delitos econômicos, ou seja, que “devem ser outras as regras para a determinação do princípio da legalidade pela maior profusão das leis penais em branco e da parcial ruptura da taxatividade de sua estrutura normativa” (SILVA, 2010, p. 199), pergunta-se: a tipicidade, sob o plano da taxatividade deve ser “outra” em relação ao Direito Penal Econômico?

Para Faria Costa (2001, p. 19), trata-se de uma “criminalidade particularmente sensível e aproveitadora de vazios normativos ou de inibições ou incertezas no que toca à efetiva e real aplicação atempada da lei penal”, em que se reconhecem tênues afloramentos de autonomia material (COSTA, 2007, p. 33). No entanto, ressalta que:

“nem a necessidade de se combater s criminalidade grave ou gravíssima pode ‘potenciar  a subversão de alguns princípios fundamentais do direito penal comum’. E não se deve fomentar, muito menos deve fazer crer que só através da subversão se consegue algum êxito na luta contra esse tipo de criminalidade” (Costa, 2001, p. 25).

Cabe referir que, no Brasil, os delitos econômicos não se encontram sistematizados, mas sim definidos em leis especiais, tais como a Lei 7492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), a Lei 8137/90 (Crimes contra a Ordem Tributária) e a Lei 9613/98 (Delitos de Lavagem de Dinheiro).

Andrei Schmidt sustenta que deve ser abandonado o entendimento de que “o princípio da taxatividade é observado na condição de que o legislador tenha respeitado a melhor precisão” (SCHMIDT, 2015, p. 159), percebendo-se que “a definição integral do ilícito exige níveis razoáveis de controle da discricionariedade das agências penais, […] sendo uma das estratégias externas de grande valia para tanto o uso do reenvio normativo como instrumento de correção da indeterminação do tipo de ilícito penal” (SCHMIDT, 2015, p. 170).

Assim, o uso do reenvio normativo tem sido aceito doutrinariamente desde que “o núcleo fundamental da proibição seja fixado pelo legislador” (GRECO, 2006, p. 165), porquanto, neste caso, leva em os limites constitucionais impostos em decorrência do princípio da legalidade.

Por outro lado, o direito penal econômico traz um exemplo prodigioso de tipo penal “sem salvação” por afronta irremediável à taxatividade. Trata-se do tipo de gestão temerária, previsto no artigo 4º da Lei 7492/86, cuja redação traz, na sua descrição –  gerir temerariamente instituição financeira – um desvirtuamento do princípio basilar supramencionado em face da presença de um elemento normativo ambíguo (temerariamente). A acepção a ser dada ao elemento normativo temerariamente é de tal amplitude que impede que o sujeito possa ter conhecimento do que seria ou poderia ser considerado gestão temerária. Infelizmente não foi reconhecida a inconstitucionalidade desse dispositivo legal.

Quando se questiona sobre a possibilidade de “correção do tipo” a partir de uma interpretação que busque limitar o arbítrio do aplicador da lei penal, deve-se atentar para a advertência de Helena Lobo da Costa:

“toda e qualquer utilização do direito penal precisa ser limitada por seus princípios fundamentais, conceitos e metodologia, desenvolvidos em razão do reconhecimento de que toda a violência estatal tende ao abuso e precisa ser, sem exceções, rigorosamente balizada” (COSTA, 2013, p. 85).

O que se deseja destacar é que a postura defendida, aqui, em relação à observância ao princípio da taxatividade no direito penal econômico não implica sustentar uma vivência dogmática não reflexiva, que não considere uma nova concepção de taxatividade ou, ainda, que exclua o espaço/a possibilidade de falas divergentes. Afinal, em um contexto de complexidade, não deve haver mais lugar para situações, como a que foi genialmente retratada na obra de Edwin Abbott, Flatland, em que o personagem principal Square (Quadrado) vivia em estado de ignorância acerca de outras dimensões possíveis (vivia em uma sociedade bidimensional) até experimentar uma mudança de perspectiva (tridimensional) e, a partir disso, ao retornar às suas origens, passou a ser segregado pelos seus pares, os quais permaneciam com a dificuldade de compreensão de um mundo fora dos conceitos já estabelecidos.

O que se mostra intolerável é que, em nome de um direito penal “atuante”, haja a flexibilização dos princípios de garantia, possibilitando que a intervenção penal se instrumentalize por meio do uso de tipos abrangentes, incertos e indeterminados, a ponto de se abrir mão de uma das maiores conquistas do direito penal – a legalidade penal.


REFERÊNCIAS

ABBOTT, Edwin A. Flatland: uma aventura em muitas dimensões. Assírio & Alvim: Lisboa, 2006.

COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito penal econômico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. (Tese de Livre-Docência), 2013.

COSTA, José de Faria. Noções fundamentais de direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

COSTA, José de Faria. O fenômeno da Globalização e o direito penal econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 34, p. 9-25, abr/jun 2001.

D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em direito penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

SCALCON, Raquel Lima. Ilícito e pena: modelos opostos de fundamentação do direito penal Contemporâneo. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2013.

SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

SILVA, Luciano Nascimento. Teoria do direito penal econômico: e fundamentos constitucionais da ciência penal secundária. Curitiba: Juruá, 2010.

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Adriane da Fonseca Pires

Servidora Pública Federal (Analista Judiciário). Mestre em Ciências Criminais. Especialista em Direito Público.

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