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‘Estado de coisas inconstitucional’ e o sistema penitenciário brasileiro

Por Bruno Augusto Vigo Milanez

Em recente decisão liminar na ADPF 347, o STF reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro.

No contexto desse julgamento, o Min. Edson Fachin afirmou que

“os estabelecimentos prisionais funcionam como instituições segregacionistas de grupos em situação de vulnerabilidade social. Encontram-se separados da sociedade os negros, as pessoas com deficiência, os analfabetos. E não há mostras de que essa segregação objetive – um dia – reintegrá-los à sociedade, mas sim, mantê-los indefinidamente apartados, a partir da contribuição que a precariedade dos estabelecimentos oferece à reincidência.”

Mais adiante, complementa:

Avista-se um estado em que os direitos fundamentais dos presos, definitivos ou provisórios, padecem de proteção efetiva por parte do Estado.”

Em igual sentido, o Min. Marco Aurélio concluiu que

“no sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se ‘lixo digno do pior tratamento possível’, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. Daí o acerto do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na comparação com as ‘masmorras medievais’.”

A sistemática e ininterrupta violação dos mais variados direitos fundamentais da população carcerária brasileira não é novidade, nem mesmo o pronunciamento de órgãos oficiais do Estado reconhecendo formalmente a falência do sistema carcerário configura ineditismo.

Ainda assim, o reconhecimento pelo STF – ainda que em sede liminar – da existência de um estado de coisas inconstitucional relativamente ao sistema penitenciário permite reflexão a partir da categoria do Estado de Exceção, tal qual exposto por Giorgio Agamben (2004). O estudo desenvolvido pelo filósofo italiano é bastante denso e nele diversas questões são abordadas (v.g. a posição do soberano em face da exceção e o debate entre Carl Schmitt e Walter Benjamin sobre o locus ocupado pela exceção, se jurídico ou político).

Nos limites desse breve texto, pretendo um resumo de algumas ideias centrais do livro – ou ao menos de interpretações próprias a partir da obra de Agamben -, relacionando-as ao estado de coisas inconstitucional reconhecido pelo STF no âmbito penitenciário. Assim, depreende-se da obra do autor italiano que:

(a) o estado de exceção implica na suspensão/neutralização do direito, ou seja, é um espaço vazio de direito no qual se suprime radicalmente o estatuto jurídico do indivíduo (op. cit. p. 12 e 14-15);

(b) paradoxalmente, o estado de exceção é condição sine qua non da existência do direito, tanto do ponto de vista da fundação da ordem jurídica (na origem, toda ordem jurídica consiste em um ato de violência originária), como de sua manutenção (op. cit. p. 61);

(c) é possível, portanto, afirmar que o estado de exceção, ainda que represente a suspensão do direito, também é condição de sua existência, de modo a se estabelecer uma relação dialética entre norma e anomia (op. cit. p. 93, 96 e 98);

(d) porém, quando o estado de exceção se torna regra, estabelece-se uma situação de emergência permanente, no qual a indistinção entre norma e anomia passa a ser a regra e o fim do direito.

No caso do sistema penitenciário nacional em particular – e do sistema de justiça criminal em geral -, a dessubjetivação do sujeito criminalizado, a suspensão sistêmica do estatuto jurídico do preso enquanto cidadão e a neutralização de direitos básicos e fundamentais representa a própria negação da alteridade no e pelo direito.

Em suma, instaura-se uma ordem paralela ao próprio direito – mas que por ele, direito, é legitimada -, em que a regra passa a ser a anomia e na qual a principal função do direito passa a ser a sua vigência sem eficácia. O estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário nacional é o suprassumo do vazio do direito dentro dele próprio. Não parece ser demais afirmar até mesmo que as garantias constitucionais dos presos (a começar pela dignidade da pessoa humana) e os direitos dos presos previstos na Lei de Execução Penal (arts. 40 a 43, da Lei 7.210/84) parecem possuir a finalidade de existir para não serem cumpridos.

Nesse cenário de coisas – que infelizmente diz respeito a pessoas -, acostumamo-nos com a violação da regra, tomamos como normal o tratamento do outro como diferente e cada vez mais equiparamos a anomia ao normal, fazendo com que o sistema penitenciário brasileiro configure, por excelência, o locus do vazio de direito. Quando, porém, esta passa a ser a regra, eliminamos não apenas o direito – de todos e não apenas de alguns -, mas a própria factibilidade da vida:

O elemento normativo necessita do elemento anômico para poder ser aplicado, mas, por outro lado, a auctoritas só pode se afirmar numa relação de validação ou de suspensão da potestas. Enquanto resulta dialética entre esses dois elementos em certa medida antagônicos, mas funcionalmente ligados, a antiga morada do direito é frágil e, em sua tensão para manter a própria ordem, já está sempre num processo de ruína e decomposição. O estado de exceção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas. Ele se baseia na ficção essencial pela qual a anomia – sob a forma da auctoritas, da lei viva ou da força de lei – ainda está em relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma está em contato direto com a vida. Enquanto os dois elementos permanecem ligados, mas conceitualmente, temporalmente e subjetivamente distintos (…), sua dialética – embora fundada sobre uma ficção – pode, entretanto, funcionar de algum modo. Mas quando tendem a coincidir numa só pessoa, quando o estado de exceção em que eles se ligam e se indeterminam torna-se a regra, então o sistema jurídico-político transforma-se em uma máquina letal.” – g.n. – (op. cit. p. 130-131)         

Se – como antes dito -, o estado de coisas inconstitucional não é algo novo em relação ao sistema penitenciário, espera-se ao menos que com o seu reconhecimento pelo STF, a situação possa caminhar para a ‘normalidade’.


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2. ed. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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