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O processo penal de Nelson Rodrigues

Por Daniel Kessler de Oliveira 

Acredito que muitos dos colegas advogados e professores por diversas vezes devem se deparar com situações complicadas, para não dizer constrangedoras no ensino jurídico.

Dentre a enormidade de situações, creio que uma das mais rotineiras e nem por isto menos inquietante e problemática, é o confronto entre a teoria e a prática forense.

Por isto, aqui, me valho por empréstimo do nome de Nelson Rodrigues, o “gênio, jornalista e escritor”, conforme fora tão bem cantado na Marquês de Sapucaí pela Unidos da Tijuca, no ano de 2001, para problematizar o processo da “Vida como ela é”.

Não são poucas as passagens do nosso Código de Processo Penal e, principalmente, de nossa Constituição Federal, que não se verificam em uma devida aplicação prática, ao menos, não na extensão que deveriam.

Surge daí, um grande dilema ao docente. Como estimular o amadurecimento teórico e a devida formação de um juízo crítico, com um profundo arcabouço técnico se o aluno não projeta de uma forma clara e proveitosa a sua aplicação prática, se muito disto esbarra num juízo reducionista por parte dos “aplicadores” do direito.

Não se pode culpar um acadêmico que está se inserindo nos tortuosos mares do conhecimento jurídico por ter uma preferência prática, por buscar um ensino que lhe permita verificar uma evolução naquela profissão que pretende desempenhar do que compartilhar das desilusões de ver a teoria reduzida a quase nada em nome de práticas tradicionais, que não se permitem sequer a uma reflexão.

Pois bem, não é este o ponto problemático. O amadurecimento do acadêmico o fará, cedo ou tarde, compreender que não se aplica uma prática desassociada de uma profunda base teórica, que o torne capaz de problematizar temas até então ignorados e pensar para além do senso comum. Imaginar o contrário, seria crer que podemos investir em autômatos e em aplicativos que profiram sentenças judiciais.

O que precisamos, para ontem, é refletir sobre a nossa prática forense e começar a entender a relevância de um amadurecimento teórico para que consigamos projetar novos rumos práticos.

O distanciamento da prática, por vezes, é necessário para o florescimento das ideias, mas um pensar teórico que não revista-se em aplicação prática, torna-se inócuo.

Então, como responder a tantos questionamentos? Como explicar o inexplicável? Como o professor não vai parecer um ser sem propriedade alguma para falar o que tanto fala, quando o aluno não encontra na prática a consequência daquele ensinamento?

De que vale aulas sobre o sistema acusatório e a profunda reflexão histórica sobre os tempos inquisitoriais que deveriam ter sido expurgados do nosso sistema processual penal pós Constituição Federal de 1988, se tudo isto esbarra em uma postura ativa do julgador.

Como incentivar um juízo que se dê guiado pelas linhas constitucionais se a constituição, em inúmeras oportunidades, sucumbe diante de uma disposição legal.

Incentivar uma busca teórica por parte de acadêmicos quando muitos dos atores judiciais desprezam, chegando a zombar de construções que busquem elevar a discussão para níveis que vão além dos corriqueiros, é a missão de todo o profissional do direito, principalmente o professor.

Lembro da lição do mestre Aury Lopes Jr., que muito afirmava que um bom professor forma bons profissionais, mas um mau professor deforma muitos profissionais.

Não se pode admitir uma aplicação prática que não compreenda conceitos basilares da teoria do direito processual penal. A prática não pode significar outra coisa senão a realização dos atos na conformidade prevista na legislação e no momento em que a prática não respeita o caminho teoricamente estabelecido pelas construções doutrinárias e pela devida aplicação legal e constitucional, esta prática é que resta inválida e não a teoria que deve ceder em nome de uma efetiva aplicação.

Os riscos inerentes a aceitação desta última hipótese são inúmeros e os efeitos decorrentes de sua valorização já são drásticos.

Sepultar a análise teórica da aplicação normativa é romper limites constitucional e legalmente estabelecidos ao ator judicial, é permitir que tudo seja válido e que cada um tenha a plena liberdade para realizar a interpretação e aplicação que melhor lhe couber.

Devemos saber que a prática se cria e se imita e que, não necessariamente, vem revestida dos valores legais e de responsabilidade técnico-científica.

A primazia da jurisprudência sobre a doutrina vem estimulando o crescimento de uma aplicação que não necessariamente se preste a uma efetiva reflexão teórica. Isto coloca o julgador de um caso penal, que é o guardião da regra do jogo, com o poder de aplicar a regra que ele julgue a mais adequada, incentivando a prática decisionista, que tão bem já denunciou Lenio Streck, que também afirma que não será o juiz, com base na sua particular concepção do mundo, que fará correções morais de leis “defeituosas”.[1]

Ainda há tempo de se buscar uma grande mudança de rumos, que não pode sucumbir em nome de uma mais efetiva e célere aplicação do direito, mormente o direito penal, como que se a reflexão teórica pudesse impedir a devida aplicação da lei e beneficiar os “malfeitores”, em detrimento da lei e da ordem.

Não podemos esquecer do que há muito já nos ensinou Alexis de Tocqueville, que admitia que a paz pública é um grande bem, mas não quero esquecer que é através da boa ordem que todos os povos chegaram à tirania.[2]


[1] STRECK, Lênio Luiz. O Que é Isto – decido conforme minha consciência?. 4 ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. P: 36/37. Citando Portanova, Princípios do Processo Civil. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. P: 112.

[2] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões; tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 173.

_Colunistas-DanielKessler

Daniel Kessler de Oliveira

Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

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