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Se tem flagrante, para que processo?

Por Daniel Kessler de Oliveira

Este questionamento, banal e até infantil para quem conhece um pouco de processo penal é muito comum e dotado de grande sentido por aqueles que não conhecem a fundo o sistema legal vigente em nosso país.

Todavia, em uma sociedade totalmente acelerada e hiperconectada através dos meios de comunicação em massa e das redes sociais, tal questionamento vem ganhando força e, num movimento perigoso, tomando as páginas dos processos penais.

No entanto, tal movimento, do contrário que se possa imaginar, não é algo novo, pois remonta aos primórdios do sistema inquisitório que durante muito tempo guiou a solução dos conflitos penais mundo afora.

Nos idos do Séc. XVII, quando o sistema acusatório passou a ser questionado, o pano de fundo da insatisfação social para com aquela sistemática, versava justamente em relação aos casos de flagrante delito, onde não se conseguia entender o porquê de tantas garantias e tantas regras processuais diante de algo evidente (LOPES JR., 2012).

O sistema inquisitório, assim, ganhou força e protagonizou todos os lamentáveis eventos históricos que temos conhecimento. No entanto, suas raízes ainda habitam sistemas legais e suas crenças seguem a inspirar culturas jurídicas em pleno Século XXI.

A defesa de um processo, devido e legal é a defesa da própria democracia, é a defesa dos valores democráticos que alçaram o indivíduo ao patamar de sujeito de direitos e não mais um objeto a serviço do poder do Estado.

Desprezar o processo é abdicar de uma gama de garantias fundamentais que não possuem outro instrumento apto a efetivá-los que não um processo que obedeça às diretrizes legais e os parâmetros constitucionalmente fixados.

A defesa do processo não pode ser confundida com um estímulo à impunidade, pois é um meio imprescindível para o alcance da justiça.

Estas premissas deveriam estar incutidas na mente de todo e qualquer operador do direito, de modo que a sua repetição seria desnecessária, contudo, não é esta a realidade que vivenciamos.

Cada vez mais, a defesa do processo precisa ser repetida para que, um dia, quem sabe, seja compreendida.

Sendo assim, tornemos ao questionamento do título: para que processo se houve flagrante?

Sabemos já da imprescindibilidade do processo para a aplicação de qualquer pena a alguém e isto não é questão de escolha ou de entendimento, é disposição expressa e garantia fundamental prevista no Art. 5º LVII.

No entanto, outro questionamento se faz necessário. O que, efetivamente, é o flagrante?

A redação do Art. 302 do CPP, traz as hipóteses em que o indivíduo será considerado em flagrante delito e, nestes casos, o particular está autorizado e o público obrigado a atuar para impedir a continuidade do crime.

Com isto, o indivíduo que estiver cometendo ou acabar de cometer a infração, bem como aquele que for perseguido, logo após ou encontrado em situação ou com instrumentos, objetos ou papéis  que o faça presumir ser o autor da infração pela nossa legislação poderá ser preso em flagrante delitivo.

Só que o flagrante não se constitui em uma prisão preventiva ou temporária, não podendo o indivíduo ser mantido preso apenas pelo fato de ter sido autuado em flagrante delito.

Como bem define LOPES JR. (2013, p. 52):

“A prisão em flagrante é uma medida precautelar, de natureza pessoal, cuja precariedade vem marcada pela possibilidade de ser adotada por particulares ou autoridade policial, e que somente está justificada pela brevidade de sua duração e o imperioso dever de análise judicial em até 24 horas, nas quais cumprirá ao juiz analisar a sua legalidade e decidir sua manutenção da prisão (agora como preventiva) ou não”.

Com isto, necessário repetir que o flagrante não prende por si só, tendo que a autoridade judicial fundamentar com base nos requisitos da prisão preventiva a manutenção da segregação.

Voltemos ao questionamento, para que tudo isto? A resposta é simples, a flagrância não é um estado absoluto e inquestionável podendo sofrer distorções, dilações indevidas, construções hipotéticas e enquadramentos injustos que se amoldem as amplas previsões do Art. 302 do CPP.

E frisa-se, a crítica não é a redação da lei, que entendemos ter de possuir alguma amplitude para poder amoldar-se a questões que, efetivamente, se encontre o indivíduo em situações que não sejam apenas aquela em que ele, de fato, realiza o crime na presença de alguém do povo ou de uma autoridade.

No entanto, para que esta previsão possa ser inserida em nosso texto legal, é necessário que encaremos o flagrante da forma como referido acima, ou seja, que não lhe emprestemos um valor absoluto, pois isto pode representar o sepultamento de toda uma estruturação processual constitucional.

Admitir que o flagrante dispensa o processo, seria admitir um nível extremamente demasiado de presunção de veracidade nas informações prestadas pelo condutor, o que, geralmente, pode representar uma arbitrariedade, que sempre se traduz em uma violação aos direitos fundamentais.

Portanto, o flagrante deve servir de elemento para a formação dos juízos a serem realizados no âmbito da investigação e do processo, mas não tendo um valor absoluto que não permita o seu devido questionamento.

A ampliação conceitual do status de flagrante delito, vem sendo desprezado por parte significativa dos autores judiciais, o que, se acompanhado desta noção de absoluta veracidade, tornará o processo, instrumento tão valioso em uma democracia, em um instrumento inócuo.

Nos últimos dias, ganhou força o debate do flagrante em relação ao crime permanente, pela antológica prisão de um Senador da república. No entanto, tal tema já foi enfrentado por pessoas muito mais aptas a realizar tal enfrentamento, de modo que, ocuparemos aqui uma outra análise, a que se refere ao tráfico de drogas.

O tráfico é o que mais prende no Brasil, isto qualquer pessoa sabe. O tráfico está ligado a imensa maioria dos crimes ocorridos no País, o que também é de conhecimento geral.

E o tráfico é considerado um crime permanente, de modo que seu flagrante resta autorizado a qualquer momento, de modo que a busca em uma residência dispensa o mandado judicial, bem como mais uma série de conseqüências inerentes ao estado de flagrância.

Não nos ocuparemos aqui, dado ao curto espaço, da definição de crime permanente, tampouco, se o tráfico se enquadra nesta categoria, mas apenas, analisar a amplitude do flagrante nestes casos.

Imaginar que o indivíduo é traficante, presume que este esteja praticando algum dos múltiplos verbos que compõe o tipo penal do Art. 33 da Lei 11.343/2006.

Mas como definir o conceito de flagrante (do art. 302 do CPP) com o crime de tráfico de drogas quando a polícia adentra (sem mandado) em uma residência e encontra determinada quantidade drogas? E a possibilidade do uso, previsto no Art. 28 da Lei 11.343/2006?

Portanto, não se trata de enfraquecer o flagrante delitivo, mas apenas que tenhamos nele o valor que este possui e não realizemos uma valorização hipertrofiada e indevida.

Devemos nos valer da prisão em flagrante como um relevante instituto para impedir o prosseguimento do crime, bem como um elemento essencial na avaliação do conjunto probatório, mas nunca como um instrumento apto a violações de garantias e a construções hipotéticas em termos de culpabilidade.

O fato do crime ser considerado permanente não pode autorizar a prisão em qualquer momento, tampouco a busca sem a devida autorização judicial, pois, do contrário, toda casa pode ser invadida por autoridades policiais sob a suspeita de que ali ocorra tráfico de drogas, bem como todo e qualquer sujeito poderá ser conduzido a uma delegacia sob a suspeita de ser traficante e, portanto, merecer a prisão em flagrante.

Para alguns isto pode representar uma importante ferramenta no combate ao crime, já para outros (e sei que não estou sozinho) representa um grave retrocesso.


REFERÊNCIAS

LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

____________. Prisões Cautelares. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

_Colunistas-DanielKessler

Daniel Kessler de Oliveira

Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

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