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Sobre descasos e excessos: Direito Penal e imigração na União Europeia

Por Maiquel Wermuth

As políticas de imigração dos países centrais europeus assumem na contemporaneidade traços altamente repressivistas e excludentes, uma vez que assentadas em práticas que priorizam o controle das fronteiras no sentido de sua “impermeabilização”, bem como na perseguição e expulsão dos imigrantes que eventualmente conseguem transpô-las de forma irregular. Por outro lado, os cidadãos autóctones que eventualmente auxiliam os imigrantes no seu intento, também são punidos por meio dos chamados “delitos de solidariedade”.

Os objetivos das políticas migratórias europeias contemporâneas podem ser sintetizados em três eixos: 1) evitar que os imigrantes saiam de seus países de origem; 2) se eles saírem de seus países de origem, evitar que entrem no território europeu; 3) se entrarem no território europeu, forçá-los a sair.

No que se refere ao primeiro eixo, a externalização do controle das fronteiras europeias foi ratificada pelo Pacto Europeu sobre a Imigração e o Asilo (2008). Por meio desse Pacto, os países de origem e de trânsito dos migrantes com destino à União Europeia são colocados na posição de guardas de fronteiras, função que mais se parece com uma obrigação, já que eles tem o dever de proteger à distância os limites territoriais da Europa, em troca de contrapartidas financeiras e políticas. Isso implica a construção, nas palavras de Baggio (2010, p. 65), de uma espécie de “‘cinturón de seguridad frente a la inmigración’ que incluye a varios países del sur y del este”.

Nesse sentido, os constantes “acidentes” que resultam em morte de imigrantes em áreas de trânsito, marítimas ou terrestres, colocam em evidência, para além do descaso absoluto para com a tutela dos direitos humanos dos migrantes, a ineficácia das técnicas de mera proibição que tem orientado as políticas migratórias comunitárias. Além disso, convém salientar que é justamente a dificuldade em aceder ao território comunitário que acaba por, reflexamente, incrementar a criminalidade organizada no que diz respeito ao tráfico de pessoas.

Paradoxalmente, todo o cerco criado para impedir acaba por incrementar a imigração irregular e, consequentemente, os riscos assumidos pelas pessoas que pretendem transpor as fronteiras, podendo-se falar em “una relación directa entre incremento de las dificultades y número de muertes en el intento, lo que hace especialmente patente en la frontera sur de Europa, donde la intensificación del control supuso la búsqueda de travesías alternativas, más largas y más peligrosas.” (MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2009, p. 7).

Na tentativa de chegar a um país mais desenvolvido, morrem pelo menos oito imigrantes por dia, de acordo com o relatório “Viagens Letais” divulgado em 29/09/2014 pela OIM (Organização Internacional de Migrações). A maior parte destes é proveniente da África e do Oriente Médio. Embora sejam estimativas alarmantes, o documento da OIM acredita que o número deva ser superior, pois não são todas as mortes que são registradas. Segundo analistas, para cada corpo de imigrante encontrado, há dois que permanecem desaparecidos.

O segundo objetivo a ser alcançado pelas políticas migratórias europeias (evitar a entrada dos imigrantes) traduz-se na tentativa de impermeabilização das fronteiras de forma a evitar o ingresso dos imigrantes. Evidencia-se, nesse ponto, que o componente mais relevante do modelo de regulação da imigração na União Europeia é a sua dimensão laboral, sendo o imigrante contemplado como mão-de-obra: “cuántos y qué inmigrantes estamos dispuestos a aceptar es algo a determinar em atención fundamentalmente a las necesidades de nuestro mercado laboral.” (MARTÍNEZ ESCAMILLA, 2007).

Em virtude das sucessivas crises econômicas pelas quais tem passado  recentemente a União Europeia, a influência da economia sobre as políticas de controle dos fluxos migratórios tem se mostrado ainda mais evidente. Analisando a questão a partir do momento em que começa a se verificar nos países da então Comunidade Europeia, em meados da década de 1970, a crise do modo de regulação fordista, Brandariz García (2011, p. 17) menciona que os migrantes passam paulatinamente a perder a centralidade produtiva e, em tal medida, também a centralidade social e política, “de modo que la inmigración deja de ser contemplada primordialmente como un factor de desarollo, y pasa ser vista ante todo como un problema, como un hecho antitético al actual modelo de evolución social, que debe ser gestionado fundamentalmente desde la perspectiva del control.”

E, neste ponto, revela-se um outro aspecto que tem contribuído para a construção dos imigrantes enquanto “sujeitos de risco”: a questão do “parasitismo social”, ou seja, da sua consideração enquanto “parasitas” de um Welfare State cada vez mais cauíla no cumprimento de seu desiderato para com os cidadãos autóctones. Spire (2013) sintetiza o câmbio de perspectiva de análise do problema pelos líderes políticos europeus: a passagem de um modelo de “imigração econômica” para um modelo de “turismo de benefícios sociais”.

Nos debates políticos travados acerca do tema, considera-se que os imigrantes – principalmente os oriundos da África – estariam abusando dos sistemas de proteção social europeus, o que demonstra, segundo Spire (2013) uma completa dissonância com a realidade social e jurídica das populações estrangeiras em todos os países europeus. Efetivamente, ao lado dos ciganos, os estrangeiros estão entre as pessoas mais vulnerabilizadas no que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde.

Logo, os discursos “parasitários” cumprem, na ótica do sobredito sociólogo, com uma função ideológica que é decisiva em uma época de crise econômica e de pânico moral, qual seja: eles fornecem legitimidade simbólica para políticas de exclusão que de outra maneira não receberiam aprovação por parte da população. Nessa ótica, portanto, os estrangeiros não mais seriam rejeitados em virtude de concepções racistas/xenofóbicas de nação, mas em virtude de um ideal consensual: salvaguardar o que resta do Welfare State em favor dos cidadãos autóctones.

Por fim, no que se refere ao terceiro objetivo das políticas de controle de fluxos migratórios europeias (forçar os imigrantes a sair do território europeu), é cada vez mais frequente o recurso ao Direito Penal. As políticas migratórias, nesse sentido, cada vez mais assumem um caráter securitário, preventivo e repressivo (DEL VALLE GÁLVEZ, 2005). Uma análise dos delitos relacionados com a imigração irregular revela que o que provoca a resposta do ordenamento penal é a própria atividade migratória em si, ou seja, o momento da entrada do sujeito no território e, por outro lado, no que se refere à expulsão de cidadãos estrangeiros sem residência legal, incide-se no momento do fracasso do projeto de imigração mediado pelo próprio sistema jurídico-penal, configurando uma especial modalidade de saída (CANCIO MELIÁ, 2005).

A figura estereotipada do migrante está no centro dessas alterações: apresentados como categorias de risco, os migrantes irregulares são alvo de uma política criminal extremamente dura, pautada pela perseguição e pela repressão (MONCLÚS MASÓ, 2005). Isso permite afirmar que se assiste, na realidade jurídico-penal europeia, à construção de um modelo de Direito Penal de autor, visto que em muitos casos a condição pessoal de “ser” imigrante ilegal vem sendo, por si só, convertida em delito, ou então considerada enquanto causa de justificação de medidas punitivas mais drásticas que priorizam a inocuização do indivíduo, propiciando assim uma atuação do direito punitivo em clara afronta aos direitos fundamentais da pessoa humana (DONINI, 2009).

A partir disso, reforça-se o ambiente social pautado pela “mixofobia” ou, em outras palavras, pelo “medo de misturar-se” com os imigrantes, razão pela qual a gestão da imigração cada vez mais se dá em nível de “segurança”, com destaque para o controle das fronteiras e para o reforço dos instrumentos jurídicos e meios materiais que possam potencializar a “luta” contra a imigração irregular, em detrimento da integração dessa população.

REFERÊNCIAS

BAGGIO, Fabio. Fronteras nacionales, internalizadas y externalizadas. In: ANGUIANO, María Eugenia; LÓPEZ SALA, Ana María. Migraciones y fronteras: nuevos contornos para la movilidad internacional. Barcelona: Icaria Editorial, 2010. p. 49-73.

BRANDARIZ GARCÍA, José Ángel. Sistema penal y control de los migrantes: gramática del migrante como infractor penal. Granada: Comares, 2011.

CANCIO MELIÁ, Manuel. El Derecho Penal español ante la inmigración: um estudio político-criminal. In: CANCIO MELIÁ, Manuel; BACIGALUPO, Silvina. Derecho penal y política transnacional. Barcelona: Atelier, 2005. p. 343-415.

DEL VALLE GÁLVEZ, Alejandro. El frágil estatuto internacional y europeo del inmigrante irregular. In: DEL VALLE GÁLVEZ, Alejandro; ACOSTA SÁNCHEZ, Miguel Ángel. Inmigración irregular y derecho. Servicio de Publicaciones de La Universidad de Cádiz, 2005. p. 137-150.

DONINI, Massimo. El ciudadano extracomunitario: de “objeto material” a “tipo de autor” en el control penal de la inmigración. Revista Penal. n. 24, p. 52-70, 2009.

MARTÍNEZ ESCAMILLA, Margarita. La inmigración como delito. Un análisis político-criminal, dogmático y constitucional del tipo básico del art. 318 bis CP. Barcelona: Atelier, 2007.

MARTÍNEZ ESCAMILLA, Margarita. Inmigración, Derechos Humanos y Política Criminal: ¿Hasta donde estamos dispuestos a llegar? Revista Para el Análisis del Derecho. n. 3, p. 2-45, 2009. Disponível em: <www.indret.com>. Acesso em: 25 jun. 2015.

MONCLÚS MASÓ, Marta. Hacia una  política criminal diferenciada para los extranjeros: la consolidación de la expulsión como sanção penal especial. In: RIVERA BEIRAS, Iñaki (org). Política criminal y sistema penal: viejas y nuevas racionalidades punitivas. Barcelona: Anthropos, 2005. p. 330-348.

SPIRE, Alexis. Xenofobia em nome do Estado de bem-estar social. Le Monde Diplomatique Brasil. 2013. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1550>. Acesso em: 13 jul. 2015.

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