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Atribuições têm limite!


Por Vilvana Damiani Zanellato


Apesar de a maciça maioria da respeitosa comunidade jurídica ter aplaudido recente decisão do Supremo Tribunal Federal, quanto à questão relacionada a conflito de atribuição entre membros do Ministério Público Federal e Estadual, no sentido de que cabe ao Procurador-Geral da República dirimir a controvérsia, ousa-se discordar.

Durante muito tempo a Corte Suprema não entendia ser da sua competência analisar conflito de atribuição entre Parquet de Unidades diversas da Federação, bem assim entre esse e membro que atua na seara federal.

Não obstante, a jurisprudência passou a oscilar quanto ao tema, tendo, em 2011, ao julgar a Ação Civil Originária nº 1.109, firmado o entendimento de que a competência para apreciar a questão era mesmo do Supremo Tribunal Federal, com fundamento na alínea “f” do inciso I do art. 102 da CF, cujo teor estabelece sua competência para julgar “as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta”, desde que ausente decisão do Poder Judiciário.

Ainda que tal diretriz tenha sobrevivido por algum tempo, o desconcerto, por óbvio, não permaneceria ad eternum sem retoques.

Tanto é que, ao apreciar as Ações Cíveis Originárias nº 924 e nº 1.394 e as Petições nº 4.706 e nº 4.863, a Suprema Corte alterou seu entendimento, afastando, acertadamente, sua competência para dirimir controvérsia existente entre membros do Ministério Público que atuam na esfera federal e estadual.

Contudo, ainda que corretíssima a decisão quanto à exclusão da competência do Supremo Tribunal Federal, entende-se que a Corte não se recobrou de modo totalmente acertado. Isso porque, muito embora tenha afastado sua jurisdição nos casos em comento, passou a reconhecer que a dissonância pertinente à atribuição de referidos membros deve ser decidida pelo Procurador-Geral da República.

Ora, não se ignora o trabalho relevante bem desempenhado pelo Ministério Público Federal, notadamente pelo Chefe do Ministério Público da União, seja em relação às questões ambientais, seja em razão das classes menos favorecidas, seja no âmbito penal e em outras muitas searas.

Entretanto, ainda que o Procurador-Geral da República tenha ingerência quanto a todas as funções exercidas pelos membros do Ministério Púbico da União, constitucionalmente compreendidos como os integrantes do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Militar e do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, certo é que não exerce comando pertinente aos membros do Ministério Público dos Estados.

O próprio Estatuto do Ministério Público da União traz, em seu art. 25, norma que deixa clara a restrição do Procurador-Geral da República como Chefe do Ministério Público da União, elencando, no inciso VII do art. 26, sua competência para “dirimir conflitos de atribuição entre integrantes de ramos diferentes do Ministério Público da União”, sendo totalmente silente quanto aos membros do Ministério Público dos Estados.

De outro lado, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público trata exclusivamente dos membros que integram as unidades da federação, sem fazer qualquer referência ao Procurador-Geral da República ou ao Ministério Público da União, exceto quanto ao exercício da função eleitoral no primeiro grau.

Como visto, salvo mencionada exceção, não há qualquer justificativa legal que subordine o Ministério Público Estadual ao Procurador-Geral da República. A ressalva, aliás, apenas persiste em face da ausência de procuradorias da república em todos os municípios, situação que difere quando se trata de promotoria de justiça, cuja presença em todas as comarcas é obrigatória. Essa questão – função eleitoral – é a única ligação (distante, diga-se) existente entre o Procurador-Geral da República e os membros do Ministério Público dos Estados. No mais, cada qual tem seu chefe institucional na figura do Procurador-Geral de Justiça, que também não é subordinado ao Procurador-Geral da República.

Daí reside o questionamento: deveria, então, o Supremo Tribunal Federal ter mantido a orientação jurisprudencial, dando-se por competente para dirimir tais conflitos de atribuição?

Não, não deveria.

Surge, portanto, o segundo questionamento: quem deve analisar a controvérsia entre os membros conflitantes, senão o Procurador-Geral da República?

Com todo respeito que se nutre ao Ministério Público da União, e em especial à Chefia dessa nobre instituição, outro caminho há de ser seguido. E não é complicado quanto parece. Aliás, é de uma singeleza que acaba gerando perplexidade por não ser percorrido.

Analise-se:

Se um membro do Ministério Público do Estado declina de sua atribuição para exercer o múnus em determinado procedimento, ao argumento de que esse é do Parquet Federal, por qual razão, ainda que em decorrência da simetria, não se compreende nos mesmos moldes dos conflitos de jurisdição?

Se esses mesmos membros, para prosseguir com o procedimento e judicializá-lo ou promover seu arquivamento, necessitam, na maioria das hipóteses, da decisão judicial, por que não subentender que o conflito – embora não haja qualquer pronunciamento de magistrado, mas desse dependerá para prosseguir ou cessar o procedimento – é de jurisdição, ainda que futura?

O só fato de ambos os membros negarem que possuem atribuição para exercer sua função no procedimento, automaticamente, não confere competência ao Procurador-Geral da República para defini-la.

A partir do momento em que um membro do Ministério Público do Estado entende que quem deve atuar é o integrante do Ministério Público Federal, ou vice-versa, é caso de encaminhar o procedimento à manifestação judicial respectiva que, sem qualquer dúvida, irá estabelecer ou dirimir a existência de conflito, mesmo porque ou ambos os Juízos:

  • concordam entre si, o que afastada qualquer conflito, cabendo ao Ministério Público se conformar ou ingressar com o conflito perante o Superior Tribunal de Justiça, pois pouco importa o que será decidido quanto à atribuição, já que a competência jurisdicional vincula a atribuição ministerial;
  • negam suas competências, o que levará a controvérsia também à Corte Superior; ou
  • se dão por competentes, resultando igualmente a definição ao Superior Tribunal de Justiça.

Então, por mais que se argua que o Ministério Público é instituição una e indivisível, não se pode vendar os olhos e olvidar-se que tanto a Constituição da República quanto os Estatutos que tratam da organização desses órgãos em suas esferas federal e estadual promovem divisão funcional que os levam a chefias diversas quando o tema cuida de suas atribuições.

Assim, nem Supremo Tribunal Federal nem Procurador-Geral da República encontram guarida legal para dirimir conflito de atribuições desse jaez.

A competência, a título do que ocorre com os conflitos de jurisdição, há de ser resolvida pelo Superior Tribunal de Justiça.

Ultrapassar esse ponto, com o devido respeito aos que entendem de modo diverso, é exceder os limites das atribuições expressamente delineadas ao Procurador-Geral da República, a quem, enfatize-se, guarda-se profunda admiração pelo trabalho que vem desempenhando em prol de toda a coletividade.

_Colunistas-Vilvana

Vilvana Damiani Zanellato

Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestranda em Direito Constitucional. Professora de Direito.

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