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Existe um dever de investigar crimes internacionais?

Com o surgimento do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, após o término da 2ª Guerra Mundial, surge a questão para a comunidade jurídica da existência ou não de um dever jurídico imposto aos Estados de investigar crimes internacionais. Ademais, se existe tal dever, surge outra questão relevante: podem os Estados se eximir de cumprir esse dever em prol de alcançar a paz ou de uma transição negociada de regime?

O dever jurídico imposto aos Estados de investigar genocídio, crimes contra a Humanidade, crimes de guerra e crime de agressão decorre de vários tratados internacionais, entre eles, a Convenção para a Repressão e Prevenção do Genocídio (1948), as Convenções de Genebra (1949), a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura (1984), o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998) e a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados (2006).

Caso o Estado seja parte desses tratados, considerando que trazem previsão da obrigação de investigar, o descumprimento desse dever pode ensejar a responsabilidade internacional do Estado.

O dever de investigar já foi reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos em que, apesar do cometimento de crimes contra a Humanidade, o Estado que deveria exercer jurisdição sobre os crimes anistiou os perpetradores ou arquivou pedidos de investigação em nome de uma transição negociada de regime.

São emblemáticas nesse sentido as sentenças da Corte reconhecendo como contrárias ao Direito Internacional e, sobretudo, à Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), as leis de anistia de países como Peru (Barrios Altos v. Peru, de 14 de março de 2001), Chile (Almonacid Arellano v. Chile, de 26 de setembro de 2006) e Brasil (Gomes Lund et al. (Guerrilha do Araguaia) v. Brasil, de 24 de novembro de 2010).

Em 14 de junho de 2005, a Suprema Corte argentina declarou inconstitucional e contrária ao Direito Internacional a lei de anistia editada para beneficiar agentes de Estado que cometeram crimes contra a Humanidade durante a ditadura militar que regeu o país entre os anos 1976 e 1983.

De acordo com o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969), um Estado Parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para servir como justificativa para o inadimplemento de um tratado (pacta sunt servanda). Os tratados que versam sobre os crimes internacionais consolidam a obrigação dos Estados de julgar ou extraditar quem tenha cometido crimes contra os direitos humanos, em decorrência do chamado princípio do aut dedere aut judicare.

Para muitos doutrinadores, a obrigação de repressão aos crimes internacionais pode ser compreendida como parte do jus cogens internacional, dado que desde os Tribunais de Nuremberg e Tóquio o direito internacional tem se ocupado de evitar a impunidade dos perpetradores de crimes contra os direitos humanos.

Por serem crimes que vulneram a paz e a segurança da Humanidade, a comunidade internacional tem implementado tratados (como os já citados) e criado tribunais penais internacionais (como os de Nuremberg e Tóquio, os Tribunais ad hoc para ex-Iugoslávia e Ruanda, e o próprio Tribunal Penal Internacional) com a finalidade de evitar os chamados “paraísos de impunidade”, o que está em acordo com o artigo 1º da Carta das Nações de Unidas de 1945.

Segundo GUTIERREZ POSSE (2006), tratando-se de obrigação acolhida pelo direito costumeiro internacional, os Estados não podem invocar razões internas para se esquivarem dela, como, por exemplo, a concessão de asilo, refúgio, perdão ou anistia, ou em virtude do possível acirramento do conflito (no caso de uma guerra civil ou conflito internacional) ou em prol de uma transição negociada de regime.

Ocorre que em alguns casos entram em colisão a obrigação de responsabilização dos perpetradores de crimes internacionais e a necessidade premente de conciliação nacional, representada em acordo de paz, que evitará a escalada de crimes colocando fim às hostilidades, ou na política de transição negociada de regime que colocará fim a um governo ditatorial, preparando a sociedade para o surgimento de um regime democrático.

Em razão do atendimento às necessidades de justiça e da paz, o Direito Internacional tem acolhido como legítimas leis de anistia desde que venham acompanhadas de outros mecanismos judiciais ou extrajudiciais de accountability, sejam condicionadas à prévia apuração dos fatos, não se dirijam aos mais responsáveis pelos crimes (notadamente aqueles que planejam e ordenam os atos) e não englobem os crimes mais graves (como tortura, desaparecimento forçado de pessoas, homicídio e violência sexual).

Especialmente no que toca aos crimes de guerra, a jurisprudência internacional não tem aceito como legítimas leis de anistias relativas a crimes de guerra, a despeito da previsão contida no artigo 6(5) do Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra (que prevê a possibilidade de anistias para aqueles que tomaram parte nas hostilidades num conflito de caráter não-internacional).

Em relação ao crime de genocídio, a doutrina e a jurisprudência dos Tribunais Internacionais consideram que leis de anistia ou qualquer outro meio que busque evadir o perpetrador da sua responsabilidade jurídica são inválidos ante o jus cogens internacional.

Recentemente, a comunidade internacional travou intensos debates acerca da legitimidade de uma das cláusulas do acordo de paz entre o governo da Colômbia e as Forças Revolucionárias da Colômbia (as FARCs) que pretende por fim a uma guerra civil que dura há mais de 50 anos. O plano para a paz prevê a criação da chamada Jurisdição Especial para a Paz, que seria competente para o julgamento de crimes cometidos durante o conflito, seja por parte dos membros das FARCs, seja pelas forças de segurança do Estado.

Esse mecanismo judicial ad hoc, formado de juízes colombianos e estrangeiros, poderia aplicar penas alternativas à prisão àquele que assumir a responsabilidade e colaborar com a elucidação dos fatos, com possibilidade de concessão de anistia e perdão àqueles que cometeram crimes menos graves. O acordo de paz prevê ainda que estão excluídos da possibilidade de perdão e anistia crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, em atendimento à obrigação imposta pelo Direito Internacional.

No caso do modelo colombiano de justiça de transição, a ONU e organizações não-governamentais saudaram a forma como o acordo foi estruturado, porém ressalvaram que qualquer tentativa de evadir à responsabilidade os perpetradores de crimes de guerra e crimes contra a Humanidade será enfrentada pelos mecanismos do sistema de proteção dos direitos humanos.

Diante da obrigação de investigar e considerando que as circunstâncias políticas podem exigir um tratamento mais pluralista das atrocidades cometidas durante um conflito ou de um regime autoritário, faz-se necessário pensar num modelo de justiça de transição que não obstaculize a paz ou a mudança para o regime democrático, mas que não ignore o dever imposto pelo Direito Internacional de responsabilização dos perpetradores dos mais graves crimes contra os direitos humanos.

É possível pensar num modelo que reserve a sanção penal para casos mais graves e que contemple outras formas de justiça para os outros casos, como reparação econômica e compensação às vítimas, desmobilização dos combatentes, comissões de verdade, sanções administrativas, anistias e perdões condicionados à contrapartida do acusado, leis de lustração e investigação parlamentar.


REFERÊNCIAS

AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (org.). Justicia de transición: informes de América Latina, Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación Konrad Adenauer, Oficina Uruguay, 2009.

BENVENUTI, Paolo. Transitional justice and impunity. In: ZAKERIAN, Mehdi (org.). International Studies Journal. V. 1, n. 1, 2014, p.119-124.

GUTIERREZ POSSE, Hortensia D. T. Elementos de Derecho Internacional Penal. Buenos Aires: De los Cuatro Vientos Editorial, 2006.

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