1 ano do escândalo de fraude na Americanas: saiba o desenrolar do caso nos últimos 12 meses
O dia 11 de janeiro de 2023 marcou o início do desmoronamento de uma das empresas varejistas mais tradicionais do Brasil: a Americanas. A companhia informou ao mercado que havia detectado “inconsistências contábeis” em seus balanços corporativos, após o fechamento do pregão da Bolsa de Valores, por meio de um fato relevante. O rombo era estimado em cerca de R$ 20 bilhões.
O episódio, hoje apontado como o maior escândalo corporativo da história do país, deflagrou uma série de acontecimentos que levaram a Americanas à lona. Um ano depois, a varejista ainda está longe de uma recuperação total.
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Acordo de recuperação judicial
No dia 19 de dezembro do ano passado, depois de quase nove meses de negociações, a Americanas finalmente fechou um acordo com os credores para colocar em prática seu plano de recuperação judicial.
Na Assembleia Geral de Credores (AGC) da companhia, que durou mais de seis horas, o plano contou com o apoio de 91,4% dos votantes. A homologação do acordo deve ser feita nas próximas semanas, após o fim do recesso do Judiciário.
A recuperação judicial é um processo que permite às organizações renegociarem suas dívidas, evitando o encerramento das atividades, demissões ou falta de pagamento aos funcionários. Por meio desse instrumento, as empresas ficam desobrigadas de pagar aos credores por algum tempo, mas têm de apresentar um plano para acertar as contas e seguir em operação. Em linhas gerais, a recuperação judicial é uma tentativa de evitar a falência.
Início da queda das Americanas
O fato que marcou o começo do desmoranento das Lojas Americanas, já mencionado, foi o fechamento do pregão da Bolsa de Valores, no fim do dia 11 de janeiro de 2023. O fato atingiu o mercado brasileiro com uma bomba de proporções ainda inimagináveis àquela altura.
Fundada no ano de 1929 e considerada uma das marcas mais populares do país, a companhia divulgava que havia detectado o que chamou de “inconsistências contábeis”, então estimadas em R$ 20 bilhões, em seus balanços financeiros.
Nesse sentido, a Americanas comunicou que essa quantia bilionária, que se referia aos nove primeiros meses de 2022 e a períodos anteriores, não havia sido registrada corretamente em seus balanços corporativos.
Além disso, o então diretor-presidente da empresa, Sergio Rial, estava deixando o cargo de CEO apenas nove dias após assumir o posto. O então diretor financeiro da empresa, André Covre, que havia tomado posse ao lado de Rial, também renunciou.
Embora o documento divulgado ao mercado não detalhasse o que, de fato, havia sido encontrado de irregular nas contas, a Americanas afirmou que a área contábil detectou “a existência de operações de financiamento de compras em valores da mesma ordem (R$ 20 bilhões), nas quais a companhia é devedora perante instituições financeiras e que não se encontram adequadamente refletidas na conta de fornecedores nas demonstrações financeiras”.
O rombo contábil desencadeou uma profunda crise, considerada a maior da história quase centenária das Americanas.
Na manhã seguinte, os investidores estavam em pânico. Algumas das principais instituições financeiras colocaram a Americanas sob revisão. A Bolsa de Valores do Brasil (B3) pôs os papéis ordinários da companhia em leilão – uma espécie de mecanismo de defesa que interrompe as negociações em momentos nos quais há variação brusca das ações.
Mesmo assim, ao final do pregão de 12 de janeiro de 2023, os papéis da Americanas haviam desabado quase 80%, a maior queda diária de uma empresa de capital aberto no país desde 2008. O caos estava instalado no mercado.
Segundo Sergio Rial, ex-presidente da varejista, a origem do problema nas contas da Americanas estava nas chamadas operações de risco sacado. Trata-se de uma linha de crédito por meio da qual é feita uma triangulação entre empresa, fornecedores e instituições financeiras.
Ao contratar o risco sacado, a empresa pede ao banco que ele faça o pagamento de uma compra com o fornecedor. Desta forma, o banco quita o contrato em nome da companhia, que se torna devedora do banco com a cobrança de juros.
O que ocorreu é que a Americanas fez a contratação do risco sacado, mas não registrou devidamente essas operações em seus balanços contábeis. Com uma série de operações ocultadas, o grau de endividamento da varejista foi “escondido” do mercado.
No dia 13 de janeiro de 2023, a Justiça do Rio de Janeiro concedeu proteção à Americanas contra o vencimento antecipado de dívidas. A decisão marcou o início de uma longa batalha judicial contra os credores da companhia, que se arrastaria por praticamente todo o ano.
Depois de meses se referindo ao escândalo financeiro como um “rombo contábil”, a Americanas mudou o tom em junho de 2023, quando passou a classificar o episódio, publicamente, como “fraude”.
Em novembro do ano passado, a fraude contábil foi recalculada pela Americanas, que passou a estimar um rombo ainda maior, de R$ 25,2 bilhões. Em uma apresentação de 31 páginas, a companhia afirmou que foi vítima de uma “fraude sofisticada, baseada na manipulação dolosa de seus controles internos por parte de sua antiga gestão”.
Novo CEO
Em fevereiro de 2023, um mês após o rombo, ainda em meio ao turbilhão deflagrado pela revelação da fraude contábil, a Americanas anunciou o nome de seu novo presidente. Leonardo Coelho Pereira assumiu o cargo de CEO, que estava sendo ocupado por um interino desde a saída de Sergio Rial.
Coelho atuava como sócio do escritório Alvarez & Marsal desde 2011, na área de reestruturação, e tinha experiência com empresas de varejo, agronegócio, construção e energia. Também passou pela Siemens, entre 2005 e 2008.
Ele foi o terceiro CEO da Americanas em pouco mais de um mês. Seria justamente de Coelho um dos depoimentos mais explosivos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada no Congresso Nacional para investigar o escândalo na varejista.
CPI das Americanas
No dia 13 de junho de 2023, a CPI da Americanas instalada na Câmara dos Deputados ouviu o depoimento de Coelho Pereira. Em sua fala, o executivo não titubeou ao classificar o rombo bilionário nos balanços da varejista como “fraude” e acusou diretorias anteriores da empresa de terem praticado ou sido coniventes com irregularidades. “A fraude da Americanas é uma fraude de resultados”, afirmou.
O CEO da companhia exibiu documentos, que foram submetidos à CPI, mostrando que a Americanas inflava seus resultados. Como eles não apareciam no caixa, tinham de ser descontados de alguma forma – a “solução” encontrada foi usar contratos fraudados de verbas de publicidade para serem abatidos da “conta de fornecedores”, disse Coelho.
Ainda de acordo com o CEO da Americanas, não havia indícios de participação do Conselho de Administração da companhia ou do trio de acionistas de referência da empresa – formado pelos bilionários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles – nas ilegalidades. À CPI, Coelho também afirmou que cerca de 30 funcionários da Americanas estariam envolvidos direta ou indiretamente com a fraude.
Apesar do peso das acusações e da grande atenção da opinião pública em relação à CPI, os trabalhos da comissão frustraram as expectativas. Depois de mais de quatro meses de investigação, a comissão chegou ao fim sem apontar os responsáveis pelo rombo contábil.
De autoria do deputado federal Carlos Chiodini (MDB-SC), o relatório final da comissão, de mais de 350 páginas, foi aprovado com 18 votos favoráveis e oito contrários. O parecer não pediu o indiciamento de ninguém e limitou-se a sugerir ao Ministério da Fazenda que aumentasse o orçamento e o quadro de servidores da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), com o objetivo de fortalecer a fiscalização.
Em entrevista ao Metrópoles, Chiodini alegou que a CPI teve um tempo exíguo de trabalho e dificuldades para avançar nas investigações porque muitos dos depoentes convocados obtiveram autorização da Justiça para permanecer em silêncio e não responder aos questionamentos que lhes foram feitos.
Apesar de assegurar que houve comprovação de fraude na Americanas, o deputado afirmou que a CPI não conseguiu reunir elementos suficientes para apontar culpados – o que deve ficar a cargo do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF), que investigam o escândalo.
“Seria leviano, a esta altura do campeonato, o Legislativo tomar qualquer medida mais dura diante de dados ainda primários. Tivemos a preocupação de não levar a empresa à falência, transformando uma comissão da Câmara dos Deputados em um palco inquisitório de investigação”, disse Chiodini.
Troca de acusações
O primeiro ano após a revelação do rombo bilionário nos balanços da Americanas também foi marcado por uma intensa troca de acusações entre a nova e a antiga diretoria da empresa. Em setembro de 2023, a varejista apresentou documentos nos quais atribuía ao ex-CEO Miguel Gutierrez (que comandou a Americanas por duas décadas) conhecimento sobre as irregularidades. O ex-CEO, por sua vez, rebateu todas as acusações e afirmou que as informações foram apresentadas fora de contexto e não se relacionavam com a fraude contábil.
A Americanas também reagiu a uma ação apresentada pelo Bradesco na qual o banco buscava antecipar a produção de provas sobre o que houve na varejista. Na Justiça de São Paulo, a empresa protocolou um documento de 34 páginas no qual respondeu à ação do Bradesco e a acusações feitas por Gutierrez.
No documento, a Americanas sugeriu que Gutierrez e Bradesco teriam feito um conluio para atacar a empresa. A companhia apresentou cópias de e-mails obtidos pela investigação interna que ainda não tinham vindo à tona.
Em algumas das mensagens, Gutierrez ironizava os questionamentos da auditoria interna da Americanas sobre os dados referentes ao terceiro trimestre de 2022 e conversava com outros executivos sobre como responder a perguntas acerca do assunto, que poderiam ser feitas pelo executivo que assumiria o cargo de CEO, Sergio Rial.
No documento entregue à Justiça, a Americanas falou em uma “jogada milimetricamente combinada” entre Bradesco e Gutierrez. “Em manifestação protocolada na data de 10 de setembro de 2023, a Americanas volta a refutar veementemente as argumentações do senhor Miguel Gutierrez apresentadas em processo judicial movido pelo Bradesco contra a Americanas”, disse a empresa. Mais tarde, a ação do Bradesco contra a Americanas acabou sendo suspensa.
Em depoimento à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e à PF, Gutierrez, por sua vez, afirmou que nenhuma decisão estratégica era tomada sem o consentimento do trio de acionistas de referência da empresa – Lemann, Telles e Sicupira. Gutierrez disse à comissão que havia uma linha de comando na Americanas e que nenhuma decisão importante era tomada sem o conhecimento e aprovação dos acionistas de referência.
Em sua fala à CVM, o ex-CEO da Americanas voltou a negar que soubesse do rombo contábil da varejista. Gutierrez disse que nem sequer tinha envolvimento com os departamentos financeiro e contábil. As alegações foram repetidas à PF.
Balanços financeiros
Em novembro, a Americanas finalmente divulgou seus balanços revisados referentes a 2021 e 2022. Em 2021, a varejista reportou um prejuízo de R$ 6,237 bilhões, revisando o resultado anunciado anteriormente, que indicava um lucro líquido de R$ 544 milhões.
Em 2022, a Americanas também ficou no vermelho, com um prejuízo de R$ 12,912 bilhões. Com os resultados revisados, a companhia registrou um aumento de 104% nas perdas entre 2021 e 2022.
De acordo com a Americanas, o desempenho é consequência do fraco resultado operacional, além de alta despesa financeira e lançamentos extraordinários. A receita líquida consolidada, em 2022, foi de R$ 25,8 bilhões. Segundo o CEO, Leonardo Coelho Pereira, os resultados obtidos pela varejista ficaram abaixo do que seria desejável, mas foram “compatíveis com a realidade”.
Acordo com credores
O último capítulo da novela Americanas, em 2023, foi a aprovação do plano de recuperação judicial da companhia junto aos credores, em meados de dezembro.
O plano prevê a capitalização da Americanas em R$ 24 bilhões, dos quais R$ 12 bilhões serão injetados pelo trio de acionistas de referência da empresa. Os bancos credores devem converter R$ 12 bilhões em dívidas da empresa em ações, proporcionalmente à fatia de cada um na dívida. Para aprovar o plano, além da maioria do volume de créditos, a Americanas precisava do apoio da maioria simples dos credores presentes. Cada credor teve direito a um voto.
Houve algumas mudanças no plano, com a introdução de novas cláusulas, em relação ao documento protocolado no dia 27 de novembro – essas alterações fizeram a assembleia se estender e quase levaram ao adiamento da votação. Segundo a Americanas, as mudanças foram “pontuais”. A primeira versão do plano de recuperação judicial havia sido apresentada pela varejista em março.
Em nota após a votação, Coelho Pereira afirmou que o plano oferece um “caminho bem pavimentado para a reconstrução operacional e financeira” da empresa.
O que diz a Americanas
De acordo com uma nota divulgada ao Metrópoles, a Americanas afirma que 2023 foi “o ano mais desafiador de sua história quase centenária” e projeta “uma nova fase” em 2024.
“Ao longo de 2023, enquanto negociava com credores o Plano de Recuperação Judicial, a Americanas buscou reconquistar a confiança de fornecedores, parceiros e sellers, revisou os sistemas logísticos, reformatou os modelos de lojas físicas e revisitou as modelagens de margem e precificação”, diz a companhia.
“A Americanas agora aguarda a homologação de seu plano de recuperação judicial, aprovado em 19 de dezembro de 2023 por 97% dos detentores de créditos, para dar início ao pagamento das dívidas e à capitalização de R$ 24 bilhões, com aporte de R$ 12 bilhões pelos acionistas de referência e conversão de dívidas de R$ 12 bilhões pelos credores financeiros”, prossegue a Americanas.
“Esse importante passo permitirá a captura plena da transformação prevista no Plano Estratégico da Americanas, assim como sua reconstrução operacional e financeira, com retomada de crescimento e impacto imediato na preservação de milhares de empregos diretos e indiretos gerados em todo o país”, conclui a varejista.
Fonte: Metrópoles