A 13ª Emenda: da escravidão à criminalização?
A 13ª Emenda, documentário dirigido pela cineasta Ava DuVernay, produzido pela Netflix e lançado em 7 de outubro de 2016, já inicia trazendo dados impactantes: apesar de abrigar apenas 5% da população mundial, os Estados Unidos têm 2,3 milhões de pessoas em situação de prisão, ou seja, mais 25% dos presos do planeta. Dessa população presidiária, 40% é formada por negros, percentual muito grande, considerando que representam apenas 12% da população total do país.
Em seguida, traz a reflexão de que o sistema “ficou caro demais”, “saiu do controle”, em uma nítida preocupação com os custos dessa política, o que induz à necessidade de sua reformulação. No contexto de uma campanha presidencial em que Donald Trump se intitula o “candidato a Lei e da Ordem”, ao passo que Hillary Clinton traz novas alternativas ao encarceramento de massa, a questão penal é novamente um dos cernes da disputa política, como tem sido em vários contextos do globo, reforçando a tendência de “governar através do crime”.[1]
Essa análise atuarial e pautada na governamentalidade traz, ainda, uma reflexão essencial e muito mais profunda do que os dados sobre encarceramento: se antes a escravidão era um sistema econômico – e o término da escravidão, no fim da Guerra Civil, fragilizou os meios de produção do Sul do país -, após o fim desse regime, o que aconteceu foi uma rápida transição para a criminalidade negra.
Não é por acaso que o título do documentário é A 13ª Emenda, fazendo uma alusão à Emenda Constitucional que, em 1865, aboliu a escravidão e os trabalhos forçados nos Estados Unidos, “salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. Assim, a “brecha” de A 13ª Emenda foi explorada para seguir “escravizando negros”, agora mediante a criminalização primária e secundária, e o status de “criminoso” passou a ser relacionado com a imagem do “negro maldoso e ameaçador”.[2]
A construção da “criminalidade negra” ficou clara no filme “O nascimento de uma nação”, dirigido por D. W. Griffith e datado de 1915, que eternizou o mito do “negro estuprador” e o “medo primitivo americano do estupro inter-racial”. A película, aliás, foi parcialmente responsável pelo nascimento da Ku Klux Klan e por uma onda de linchamentos contra negros. Reforçando essa violência, os ativistas dos movimentos pelos direitos civis dos negros acabaram sendo criminalizados e segregados.
Na década de 1970, paralelamente ao movimento “Lei e Ordem”, iniciou-se a “guerra às drogas” e o traficante se tornou o inimigo público número um. Segundo A 13ª Emenda, foi uma estratégia política do Presidente Richard Nixon para recrutar democratas do sul para o lado republicano, uma vez que o discurso do combate às drogas convenceu brancos pobres e trabalhadores a se unirem ao partido. Isso porque essa estratégia relaciona negros e movimentos sociais à permissividade no país e, por sua vez, a permissividade às “drogas”.
Em 1981, com a eleição de Ronald Reagan, a guerra retórica se transformou em uma guerra de fato, como já denunciava Loïc Wacquant. Se, de um lado, o Presidente atacava o Estado de bem-estar social – sistema educacional, sanitário, previdenciário, etc. -, de outro, milhões de dólares passaram a ser gastos no combate às drogas e no superencarceramento.
Reagan propagava que “a epidemia das drogas é tão perigosa quanto o terrorismo”, e propunha penas maiores para os usuários e traficantes crack (periferias) e mais brandas para os de cocaína (bairros mais ricos). Tanto o Parlamento quanto o Poder Judiciário, apoiados e incentivados pela mídia, aderiram a esse discurso e, assim, os negros, hispânicos e latinos recebiam penas mais longas por posse de crack.
Na era Bill Clinton, o assassinato de Polly Klaas e o incessante trabalho da mídia para a construção do criminoso como inimigo interno levou à aprovação da regra do “three strikes and you are out”, determinando a incidência de prisão perpétua para condenados pelo terceiro crime grave. A partir disso, o documentário A 13ª Emenda cita casos de mulheres condenadas à prisão perpétua somente por transportar cocaína, segregando famílias e fazendo com que seus filhos crescessem sem mães.
Finalmente, em 1994, foi aprovada a “Violent Crime Control and Law Enforcement Act”, estopim da militarização da guerra às drogas e da política do superencarceramento. Enquanto isso, leis como “Não ceda terreno”, que permitia o assassinato em circunstâncias como a “perseguição” de suspeitos de crimes, eram álibis para matar negros, principalmente homens jovens.
A implementação dessa política criminal genocida somente foi possível pelo enfraquecimento do movimento negro e estigmatização de seus líderes, bem como pelo intenso trabalho da ALEC (American Legislative Exchange Council), que propõe e defende projetos de lei que beneficiam economicamente grandes corporações. Exemplos de beneficiários são os fornecedores de alimentos e de serviços médicos para as penitenciárias, as corporações que investem no trabalho dos presos, os comerciantes de munições, os administradores de prisões privatizadas, dentre outros.
Para tornar esses interesses mais concretos, veja-se o caso da CCA (Correction Corporation of America), que atualmente tem um contrato para deter imigrantes que lhe rende mais de 11 milhões de dólares ao mês. A CCA, aliás, tem interesse na privatização das prisões e também está realizando um intenso lobby para a implantação de um sistema de acompanhamento da liberdade condicional via monitoramento por GPS.
Os interesses financeiros, antes dos exploradores da mão de obra escrava, agora dos exploradores do “mercado da segurança pública” e, mais especificamente, do “mercado das prisões”, demonstram que os controles sociais vão se alterando em processos históricos longos, guiados por vários fatores, dentre eles, a própria economia e a manutenção de determinados status sociais no poder. Essas questões podem trazer provocações para o Brasil, dentre elas: quais os efeitos do aumento da criminalidade em relação à privatização da segurança?
Ainda se cogita privatizar o sistema prisional brasileiro?
NOTAS
[1] Simon diferencia “governar o crime” de “governar através do crime”, sendo que essa última é menos democrática e não traz mais segurança, mas reforça a cultura do medo, bem como transforma o “welfare state” em “penal state” (SIMON, Jonathan. Governing Through Crime. How the War on Crime Transformed American Democracy and Created a Culture of Fear. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 5-6).
[2] Essa construção também ocorreu no Brasil e, para aprofundamento do tema, pode-se consultar: MORAES, Ana Luisa Zago de. Crimigração: a relação entre política migratória e política criminal no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2016. No livro constam indicações de diversas obras sobre a construção do escravo liberto como inimigo, bem como o nascimento da “guerra às drogas”.