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70 anos da Lei 1.521 e sua aplicabilidade nos dias atuais

A vetusta Lei 1.521 foi promulgada em 26 de dezembro daquele ano de 1951, pelo então Presidente Getúlio Vargas e neste ano completa 70 (setenta) anos de vigência. Entretanto, ao contrário de outros corpos legislativos promulgados durante os dois momentos da Presidência de Vargas – como o Código Penal e a CLT -, nada tem a Lei 1.521 a comemorar, pois atualmente está caída no esquecimento e mal é estudada ou aplicada nos casos práticos.

A defesa da economia popular ganhou destaque e força com a Constituição Polaca de 1937, no qual os artigos 122, alínea 17 e 141 determinaram que a defesa da economia popular era um direito individual e que tais condutas infratoras seriam julgadas por um Tribunal Especial, equiparados a crimes contra o Estado.

Com a redemocratização em 1945 e a consequente Constituição Democrática do ano seguinte, o cenário já era outro. A economia popular sequer era citada na Constituição, quiçá como direito individual. Citava-se somente a Ordem Econômica, sendo que seu artigo 148 apenas passou a citar a repressão ao abuso do poder econômico, que visassem dominar o mercado, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros.

Ainda assim, em 1951, com a volta de Vargas ao poder, o Congresso Nacional votou e o Presidente sancionou a Lei 1.521, que passou a trazer condutas criminosas contra a Economia Popular em três artigos – 2º, 3º e 4º -, sendo que os crimes do artigo 2º seriam julgados por um Tribunal do Júri e os crimes do artigo 3º, possuíam penas elevadas (até dez anos de detenção).

Porém, com o passar dos anos e com novas políticas criminais existentes, partes da Lei 1.521 foram sendo revogadas paulatinamente por legislações posteriores, como a Emenda Constitucional 1/69, que limitou o poder do Tribunal do Júri para os crimes dolosos contra a vida (não recepcionando os artigos 12 a 30) e a Lei 6.979/79, que revogou as contravenções penais do artigo 9º.

O maior impacto, porém, na Lei 1.521 foi no final da década de 80 e início da de 90, com as Lei 7.492 e, principalmente, a Lei 8.137. Tais legislações criaram novos bens jurídicos (Ordem Econômica, Ordem Tributária, Relação de Consumo e Sistema Financeiro Nacional) e passaram a tipificar condutas antes previstas na Lei 1.521, sem revogar expressamente esta.

E, dependendo do texto da nova lei, a situação ainda se agravou pelo fato do novo texto ser diferente do texto antigo, criando dúvidas se o texto foi inteiramente revogado ou se parte ainda subsiste.

Por exemplo, a Lei 8.137/90 tipificou as seguintes condutas:

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

[…]

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:

[…]

VI – sonegar insumos ou bens, recusando-se a vendê-los a quem pretenda comprá-los nas condições publicamente ofertadas, ou retê-los para o fim de especulação;

Em contrapartida, na Lei 1.521/51 tais condutas estavam tipificadas no artigo 2º, descritos da seguinte forma, que notadamente verifica-se as diferenças:

Art. 2º. São crimes desta natureza:

I – recusar individualmente em estabelecimento comercial a prestação de serviços essenciais à subsistência; sonegar mercadoria ou recusar vendê-la a quem esteja em condições de comprar a pronto pagamento;

[…]

IV – negar ou deixar o fornecedor de serviços essenciais de entregar ao freguês a nota relativa à prestação de serviço, desde que a importância exceda de quinze cruzeiros, e com a indicação do preço, do nome e endereço do estabelecimento, do nome da firma ou responsável, da data e local da transação e do nome e residência do freguês;

[…]

VII – negar ou deixar o vendedor de fornecer nota ou caderno de venda de gêneros de primeira necessidade, seja à vista ou a prazo, e cuja importância exceda de dez cruzeiros, ou de especificar na nota ou caderno – que serão isentos de selo – o preço da mercadoria vendida, o nome e o endereço do estabelecimento, a firma ou o responsável, a data e local da transação e o nome e residência do freguês;

Outro exemplo é o inciso IX do artigo 3º, que trata da gestão temerária e fraudulenta de diversas instituições, enquanto o artigo 4º da Lei 7.492/86 trata somente da gestão de instituições financeiras.

Não houve revogação expressa dos tipos penais da Lei 1.521/51 pelas Leis 7.492/86 e 8.137/90. Isso gerou uma intensa discussão doutrinária sobre quais dispositivos da referida lei estão ou não em vigor.

Dentre os poucos doutrinadores que ainda se debruçam no estudo da Lei 1.521/51 na atualmente, encontramos Rui Stoco (2017), Ricardo Antônio Andreucci (2017) e Carollina Rachel Costa Ferreira Tavares. Para Stoco, houve revogação parcial dos incisos I e II do artigo 2º e revogação total dos incisos III a VII. Já em relação ao artigo 3º, estariam revogados os incisos I, III, IV e V.

Para Andreucci, houve revogação total dos incisos I a VII do artigo 2º e incisos I a V do artigo 3º. Dessa forma, a Lei 1.521 virou uma verdadeira colcha de retalhos, com tipos penais em vigor, outros revogados tacitamente (mas ainda com o texto escrito) e outros que sequer se tem definição exata de sua vigência ou não.

Por sua vez, Ferreira Tavares entende que houve a revogação dos incisos II, III, IV, V, VI e VII do artigo 2º e incisos III, IV e V do artigo 3º. A autora informa ainda que há entendimento sobre a revogação do artigo 3º, VII, por força do artigo 67 do Código de Defesa do Consumidor.

Mesmo nos incisos ainda entendido como vigentes, a sua leitura cria dúvidas se ainda permanecem vigentes ou não e se somente seriam aplicados se outras normas de Direito Penal Econômico não forem no caso concreto.

Como exemplo, podemos trazer o artigo 2º, VII – em virtude do crime de formação de cartel (artigo 4º, II, a da Lei 8.137/90); artigo 3º, VI – dada sua semelhança com o crime de manipulação de mercado (artigo 27-C da Lei 6.385/76); dentre outros.

No campo da jurisprudência, a aplicação da Lei 1.521/51 é mínima, somente se encontrando utilização pelos órgãos de repressão penal do artigo 2º, IX (crime de pirâmide financeira) e do artigo 4º, a (crime de usura) – e, em menor grau, no crime do artigo 3º, IX (gestão fraudulenta e temerária de instituições).

Para agravar o esquecimento da Lei 1.521/51, os seus crimes perderam consideravelmente a sua força punitiva, principalmente depois da reforma de 1984 do Código Penal (Lei 7.209/84) e da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95).

O seu artigo 2º, que outrora era julgado por um Tribunal do Júri, passou a ser julgado pelo Juizado Especial Criminal. O artigo 4º, que trata dos crimes de usura, idem. O artigo 3º, apesar de prever pena de até 10 (dez) anos de prisão, só pode a pena inicialmente ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, dada sua punição por detenção (artigo 33, caput do Código Penal).

Em contrapartida, a Lei 8.137/90 e, principalmente, a Lei 7.492/86, possuem penas bem mais altas que os crimes da lei de 1951. Com isso, os órgãos de repressão penal passaram a utilizar as novas leis (que gera efetiva prisão, ainda que em regime mais brando) em detrimento da antiga (que poderia gerar as medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95 ou, no máximo, prisão em regime semiaberto).

Todo esse cenário fez com que a Lei 1.521/51, apesar do seu pioneirismo no tratamento de crimes de colarinho branco, se tornasse esquecida e inaplicável, pela doutrina, pela jurisprudência e pelos órgãos de repressão. Ademais, as revogações tácitas de seu texto ao longo dos anos, de forma confusa, tornou seu texto confuso, dificultando sua compreensão e acarretando o risco do processo penal permanecer parado para decidir se o texto vige ou não.

Um dos poucos incisos que ainda é aplicado (artigo 2º, IX) corre o risco de sair da Lei 1.521/51, por causa de Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional, o que agravará o esquecimento e a inaplicabilidade da lei.

Deve o Congresso Nacional, dessa forma, revogar a Lei 1.521/51 e transferir os parcos tipos penais ainda vigentes na referida lei para as novas legislações ou revogar expressamente os textos já revogados parcialmente e dar nova vigência à legislação, um verdadeiro ar fresco à vetusta lei. O que não pode perpetuar é esse cenário de abandono de uma importante lei somente pelo decurso do tempo e pela existência de legislações novas.


REFERÊNCIAS

ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação Penal Especial. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

STOCO, Rui. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: A Economia Popular, A Ordem Econômica e as Relações de Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.


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