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A advocacia criminal através do espelho (e o que ela encontrou lá)

A advocacia criminal através do espelho (e o que ela encontrou lá)

Havia um livro sobre a mesa, perto de Alice, e, enquanto observava o Rei Branco (pois ainda estava um pouco apreensiva com relação a ele, e pronta a lhe jogar a tinta, caso voltasse a desmaiar), folheou suas páginas, encontrando um trecho que não conseguia ler – ‘é todo em alguma língua que não sei’, disse para si mesma. […] Quebrou a cabeça por algum tempo, mas por fim lhe ocorreu uma ideia luminosa. ‘Ora, este é um livro do Espelho, claro! E se eu o segurar diante de um espelho as palavras vão aparecer todas na direção certa de novo. (Lewis Carroll)

Qual não fora a surpresa de Alice ao perceber que, atravessando o espelho de casa, em uma tarde fria de inverno, seria tragada para uma aventura inesperada através de um mundo surreal em que as coisas estão do avesso e a realidade, suspensa, se reconstrói de maneira inusitada, pela interveniência de personagens fantásticas rumo a um confuso e pitoresco jogo de xadrez.

A literatura nonsense de Lewis Carroll, para além do diletantismo oferecido pelas narrativas fabulosas e surreais que envolvem a mais famosa de suas personagens, vem aqui invocada como paralelo para uma crítica – talvez menos saborosa que os contos infantis – sobre o imenso desafio que encerra o fazer da advocacia.

Qual Alice, o que se tem vivenciado nas trincheiras da defesa é exatamente a demanda outorgada pelo autor àquela personagem: atravessar um confuso e pitoresco jogo de xadrez, em um mundo em que as coisas parecem estar do avesso.

A despeito dos claros comandos hauridos em diversos dispositivos legais, especialmente os disciplinadores do sistema processual penal, desde a Constituição – passando pelo Código de Processo Penal – até as leis penais e processuais penais extravagantes, a expectativa (que amiúde se confirma cada vez mais fantasiosa) de estabilidade normativa, num piscar de olhos cede lugar ao absurdo, ao inexplicável. E como nas desventuras de um conto, de repente, está tudo de pernas para o ar e a segurança jurídica pretensamente encaminhada pela norma escorre, fluida, desaparecendo lentamente em essência e concretude, embora ainda presente no texto inerte da lei.

A densidade normativa faz as vezes do Gato de Cheshire, que desaparece deixando para trás o seu largo sorriso. “Um sorriso sem gato”, como descreve Carroll, na construção do ambiente narrativo do País das Maravilhas. É assim que se têm apresentado, ao cidadão alvo das agências punitivas do Estado, inúmeras salvaguardas normativas: letra sem densidade normativa. Está escrito, mas não “vale”. Está ali, mas não está.

A sistemática do cross examination inequivocamente estabelecida pela Lei n.º 11.690/08, inscrevendo de modo objetivo no art. 212, do Código de Processo Penal a limitação da ingerência judicial na construção da prova oral, por exemplo. Inobstante a clareza e univocidade de sentido, não raro a defesa se depara, ainda, com a necessidade de administrar o inexplicável e de batalhar para que se devolva a compreensão da norma em respeito aos mais elemntares limites e possibilidades da linguagem.

Se as perguntas devem ser formuladas pelas partes, diretamente às testemunhas, podendo o juiz complementar (frise-se: complementar) a inquirição, como fazer quando o juiz inicia a inquirição tomando para si o encargo instrutório imanente à pretensão acusatória estatal, explodindo qualquer fronteira das possibilidades hermenêuticas do texto?

Vê-se logo que, no jogo para o qual convidada a defesa, as regras previamente supostas não se verificam nas metarregras cotidianamente “impostas”, estupefazendo e desafiando a capacidade criativa do advogado nos mesmos moldes que experimenta o leitor de uma fábula, ao se defrontar, na narrativa, com coelhos que falam, lagartas de fumam, ratos que tomam chá e cartas de baralho que se pretendem imperadoras.

Tudo parece estar do avesso, e este é apenas um singelo exemplo. Tantos outros poderiam ser invocados: 

O desrespeito notório ao comando das súmulas vinculantes n.º 11 e n.º 14, do Supremo Tribunal Federal, por inúmeros juízos país afora, que insistem em manter algemas cerradas com base em fundamentações prêt-à-porter, violando o estado de inocência do preso sem sequer indício de culpa formada, ou, ainda, em negar acesso, à defesa, a autos de investigações preliminares como expediente lateral e duvidoso de ganho de competitividade acusatória no jogo do processo, uma clara evidência do que MORAIS DA ROSA (2016) chamará de dopping processual.

A (in)explicável compreensão inconstitucional da própria Constituição encaminhada pela Suprema Corte, no HC n.º 126.292, acerca da “execução provisória” da decisão condenatória, à míngua do trânsito em julgado, subvertendo séculos de sedimentação teórica das categorias conceituais no instituto processual.

Ou, ainda e, para arrematar, a deliberada cegueira em relação às prerrogativas profissionais da advocacia, insculpidas na Lei n.º 8.906/94, cuja eficácia e validade parece ser posta de lado por inúmeras autoridades, como a criança que se recusa a renegar o mundo fantástico, lúdico, onírico, onde crê que “pode tudo”, para novamente aportar na realidade, quando finda a leitura do conto, ou quando acaba a brincadeira.

Está tudo ao avesso e, talvez, uma leitura mais republicana e intelectualmente honesta do Texto Constitucional possa fazer as vezes de espelho, viabilizando o resgate de uma lucidez cada dia mais etérea. Uma atuação mais segura, firme (mas sem perder a elegância) possa, quem sabe, devolver o exercício da defesa a um ambiente em que as regras do jogo sejam, efetivamente, respeitadas. Em que não seja necessário imaginar o inimaginável ou combater ideias grotescas para o estabelecimento razoável do direito de defesa.

Afinal, parafraseando O Gato:

para quem não conhece o destino, qualquer caminho serve. Está tudo ao avesso e a advocacia criminal precisa saber onde quer chegar.


REFERÊNCIAS

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho (e o que Alice encontrou por lá). Zahar, 2010.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016


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André Coura

Advogado criminalista

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