A apropriação indébita previdenciária e a inexigibilidade de conduta diversa
A apropriação indébita previdenciária e a inexigibilidade de conduta diversa
Essa semana foi veiculada na “mídia especializada” a notícia de uma absolvição de um empresário acusado, e em primeira instância condenado, pelos delitos de sonegação de contribuições previdenciárias e apropriação indébita previdenciária.
Já adianto que a tese utilizada pela defesa foi a inexigibilidade de conduta diversa, tese essa que cada vez se torna mais forte na defesa de empresários que estão com dificuldades financeiras e simplesmente não tem condições de honrar com seus passivos.
Já tratei sobre esse assunto anteriormente, em meu artigo sobre sonegação fiscal publicado neste canal (leia AQUI). Naquela ocasião, ainda estava presente uma certa desconfiança por parte de alguns operadores do direito sobre a possibilidade da aplicação da inexigibilidade de conduta diversa também no delito de apropriação indébita previdenciária.
Tal delito apresenta algumas características especiais, especialmente devido ao seu verbo nuclear do tipo – deixar de repassar -, estando disposto no artigo 168 –A do CP:
Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional.
Fundamental aqui a existência de um agente incumbido do recolhimento da contribuição previdenciária, e que acaba por não repassá-la à previdência social. Ou seja, em tese a empresa não sofreria perda patrimonial, pois, assim como nos impostos indiretos (ICMS e IPI), ela tão somente faria o repasse da contribuição, e não realizaria a obrigação tributária principal (pagamento) com seu próprio patrimônio.
Entretanto, tendo em vista a possível existência de dificuldades financeiras, o valor recolhido muitas vezes acaba integrando o capital de giro da empresa e é integralizado para o pagamento de dívidas preexistentes da empresa com credores, ações trabalhistas, demais impostos etc.
Sendo assim, o crime de Apropriação Indébita Previdenciária constitui um tipo omissivo próprio, em que a tipicidade fica condicionada a um não fazer do agente, a uma passividade criminosa. Todavia, deverá restar provado que o agente poderia fazer, e assim não quis agir.
Não raras as vezes, durante uma crise financeira, patrimonial ou econômica, o empresário não consegue honrar com as suas obrigações primárias tributárias.
Nestas ocasiões, pode agir muitas vezes em desconformidade com as normas, o que pode vir a configurar algum tipo de ilícito (civil, tributário, trabalhista e até penal) na tentativa de proteger o bem jurídico fundamental para uma pessoa jurídica e “salvar” a empresa de uma iminente falência.
Os bens jurídicos relevantes da pessoa jurídica estão diretamente ligados ao seu estado financeiro, patrimonial e econômico. Como descreve, de forma sucinta, o doutrinador Fabio Ulhoa COELHO (2012, p. 293):
A crise da empresa pode manifestar-se de formas variadas. Ela é econômica quando as vendas de produtos ou serviços não se realizam na quantidade necessária à manutenção do negócio. É financeira quando falta à sociedade empresária dinheiro em caixa para pagar suas obrigações. Finalmente, a crise é patrimonial se o ativo é inferior ao passivo, se as dívidas superam os bens da sociedade empresária.
Qualquer um dos tipos de crise é capaz de encerrar a atividade empresarial, através de sua morte, a falência. E, muitas vezes, o empresário em situação de vulnerabilidade, diante de uma situação de crise, não consegue honrar com suas obrigações junto ao fisco, por não possuir condições materiais para fazê-lo, e, não raras as vezes, acaba por dispor dos escassos recursos que possui para saldar outras obrigações fundamentais para o funcionamento de sua empresa, assim como pagar fornecedores e funcionários.
A importância do bem jurídico mostra-se delineada a partir do prisma de que o dano causado pela falência de uma empresa vai muito além do mero prejuízo financeiro do empresário ou de seus investidores, mas sim da sociedade como um todo.
Nesse contexto, é possível que a falência da pessoa jurídica cause muito mais danos para a sociedade do que a apropriação indébita não recolhida.
Neste sentido, o professor Fábio Ulhoa COELHO (2012, p. 294).
A crise da empresa pode ser fatal, gerando prejuízos não só para os empreendedores e investidores que empregaram capital no seu desenvolvimento, como para os credores e, em alguns casos, num encadear de sucessivas crises, também para outros agentes econômicos. A crise fatal de uma grande empresa significa o fim de postos de trabalho, desabastecimento de produtos ou serviços, diminuição na arrecadação de impostos e, dependendo das circunstâncias, paralisação de atividades satélites e problemas sérios para a economia local, regional ou, até mesmo, nacional.
O conceito de inexigibilidade de conduta diversa está diretamente ligado ao principio da razoabilidade, daquilo que é esperado do agir do agente na naquela determinada situação.
Mesmo nos casos em que o empresário saiba da ilicitude ao deixar de recolher a contribuição, a sua culpabilidade deverá ser excluída pelo princípio da razoabilidade e pela tese de inexigibilidade de conduta diversa, pois estariam presentes, in casu, os requisitos de proteção de um bem jurídico importante, em detrimento de outro inferiormente importante, e o meio necessário para cessar o perigo, assim como explica NUCCI (2014, p. 560).
Um empresário, por exemplo, pode deixar de recolher determinado tributo (ou mais de um), por estar em péssima situação financeira, buscando salvar seu negócio. Ainda que saiba ser ilícita a sua atitude, não vê outra saída, até para não ser engolido pela concorrência. Provada a situação desesperadora e excepcional, parece-nos viável a sua absolvição.
Essa excludente de culpabilidade tem como principal aspecto o fato de não haver outro meio de proteger o bem jurídico, nem, tampouco, de evitar o resultado final, como ensina WESSELS (1976, p 68).
Nesse sentido, está correto o entendimento da 8ª turma do TRF 4ª, que, por unanimidade, deu provimento aos pedidos absolutórios da apelação defensiva nº 5010322-95.2017.4.04.7001/PR. Sobre esse ponto, cabe transcrever aqui parte do julgado, de relatoria do eminente desembargador federal JOÃO PEDRO GEBRAN NETO:
As graves dificuldades financeiras enfrentadas pela pessoa jurídica para adimplir a obrigação tributária constituem causa excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, desde que comprovadas pela defesa.
O ordenamento jurídico pátrio não exige condutas impossíveis. Não se imputa omissão a quem não poderia agir conforme a norma legal. Sendo assim, caberia ao Ministério Publico fazer prova de que a empresa possuiria condições de agir conforme as normas. Sobre isso, majoritária jurisprudência tem entendido que, para a concretização da inexigibilidade de conduta diversa, esta deve estar firmada em dois pilares:
1. Que o empresário comprove uma grave crise (financeira, patrimonial ou econômica);
2. A impossibilidade do repasse ou a prova de dano considerável para a empresa se assim o fizer.
Desta forma, estando presentes os dois requisitos de forma cumulativa, deverá o acusado ser absolvido da prática do crime previsto no art. 168-A do Código Penal, com fundamento na excludente de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa.
REFERÊNCIAS
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. vol 4. 13. ed. São Paulo : Saraiva, 2012.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
WESSELS, Johannes. Direito penal: parte geral. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 1976.
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?
Siga-nos no Facebook e no Instagram.
Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.