A audiência mais emocionante de um advogado criminalista
Por Anderson Figueira da Roza
Descrever uma audiência criminal é algo muito complexo. Sempre falo que o advogado criminalista deve estar muito preparado tecnicamente, o que quer dizer que conhecer profundamente a legislação processual penal e também penal sobre o delito que será objeto na solenidade. Mas após anos de experiência nesta profissão, há uma tendência de nos tornarmos mais gelados e preparados para as mais diversas possibilidades de situações que podem ocorrer numa sala de audiências.
Evidentemente, eu seria leviano se dissesse que já vi de tudo na minha atividade profissional, pois a cada processo surgem situações novas, que nos fazem refletir que o advogado criminalista é muito mais que aquele técnico que foi contratado para defender alguém que está sendo acusado de algum delito. Pois ele é a pessoa que ouve e entra em contato direto com os acusados e seus familiares, e colhe informações que vão muito além do que aquilo que está nos autos.
De tudo que já presenciei, de todos os processos que já fui contratado, das inúmeras vitórias e das inesquecíveis derrotas (pois são estas que nos fazem crescer profissionalmente), a audiência mais emocionante que participei na minha vida profissional, acabei não sendo contratado previamente por um cliente. Por ironia do destino, eu havia viajado vários quilômetros para realizar uma audiência que envolvia um homicídio numa cidade do interior do Estado, e por um motivo que já nem sequer me recordo, a audiência acabou sendo remarcada para uma nova data futura.
Assinada a ata, estava me despedindo da juíza, ela de uma forma sutil me indagou se eu poderia realizar a audiência seguinte de um réu que estava preso já algum tempo, e o caso envolvia um suposto abuso sexual do filho deste acusado. Seria a última audiência daquela tarde.
Jamais neguei colaborar com o Poder Judiciário, muitas vezes aceitei fazer audiências em circunstâncias semelhantes, e para quem já viajou algumas horas, não faria diferença alguma voltar para minha cidade algum tempo depois. Pedi para dar uma lida rapidamente nos autos, e solicitei dar uma conversada com o acusado por alguns minutos.
Quando li o processo, percebi que a criança já tinha algo em torno dos 10 (dez) anos de idade na época dos fatos, e que a mãe havia ido embora da cidade e deixado este garoto aos cuidados do pai um bom tempo antes do relato. Porém, a avó materna tinha uma grande ligação afetiva com o menino, e odiava o pai do garoto. O pai permitia a convivência do garoto com a avó em finais de semana alternados. Mas ela sempre pedia mais que isso, e de uma forma direta questionava o pai do menino, se ele não queria entregar o menino para ela cuidar, pois o amava demais, porém, o pai queria continuar criando o menino. Não havia acordo judicial algum destas visitações, nem sequer ocorrência deste abandono materno da criança, coisas que ocorrem com frequência no interior do Brasil.
Num determinado dia, houve um registro de ocorrência efetuado pela avó de que o menino teria sido abusado sexualmente pelo pai, porém o garoto não estava em condições psicológicas de prestar o esclarecimento, pois alegava a avó que o garoto havia sido deixado embriagado com ela naquele final de semana.
Logicamente, um fato gravíssimo, qual a medida urgente solicitada pelo Delegado? Prisão imediata do agressor. Naquele tempo, não havia audiência de custódia. O pai teve contra si a prisão preventiva decretada e foi recolhido imediatamente para o Presídio de uma cidade próxima.
Ao conversar com esse acusado, o pai, um sujeito muito pobre, só tinha aquele menino de filho, apenas chorava, e dizia apenas que era inocente, que jamais faria estes absurdos com seu próprio filho.
Enfim, me dei por convencido, e a audiência começa, primeiramente, ouvida a avó do garoto, completamente enfurecida com aquele acusado, afirmou toda a história e tal. Não havia muito a se extrair daquele depoimento, pois era só ódio em relação ao pai do garoto.
Passou-se a ouvir o menino, a primeira coisa que ele fez foi correr em direção ao seu pai, algemado, custodiado por agentes penitenciários, chorava, abraçava e beijava seu pai.
Eu pensei e me convenci realmente que aquele pai me falou a verdade, ele não me mentiu, não é um louco que abusou do seu próprio filho. O menino relatou com detalhes como era a vida dele com o pai, a ausência da mãe, a convivência com a avó materna, enfim ele relatava tudo com muita riqueza para um garoto daquela idade. Facilmente chegou-se a conclusão que tudo fora obra da cabeça da avó materna.
A juíza ouviu também o acusado, e sentenciou o feito logo em seguida, absolvendo o pai do garoto. Porém, o Ministério Público, se pronunciou que providenciaria uma investigação por denunciação caluniosa em desfavor da avó materna. O menino, que havia pedido de forma emocionada, ficar também ao lado do pai até o final da audiência, que lhe foi concedido, volta a se desesperar, pois pressentiu que agora a avó materna poderia ser presa e sai correndo da sala e senta-se num dos bancos do corredor do Foro e chora sem parar, o pai que estava custodiado ainda pelos agentes penitenciários, estava apavorado e com medo de sair da sala e ser preso novamente, a avó aterrorizada também ficou inerte, juíza e promotor ficaram nos seus lugares, eu abandonei a sala de audiências e sentei ao lado do garoto, que apenas chorava e se abraçava em mim, depois de alguns instantes em que eu passava a mão na sua cabeça, e lhe passava um pouco de carinho, ele me disse: “Você salvou meu pai, por favor, agora salve a minha avó, eu amo os dois, não quero mais ninguém preso.”
Não existem manuais para o que cada autoridade deve fazer numa hora dessas, e nem como deve ser a postura de um advogado numa situação como esta. A lei jamais vai prever fatos assim e o que deve ser feito, e até que ponto um processo deve ir ou não de acordo com os interesses de quem pode ser a vítima real. Ou até que momento o acusado pode querer ou não que a vítima seja processada por denunciação caluniosa.
A vida real vai muito mais além do que aquilo que se pode colocar nos autos de um processo e na própria lei.
Voltando ao garoto, não lembro exatamente as palavras que disse a ele, mas eu o vi como um filho, e nem tinha como explicar tecnicamente o que poderia a acontecer ou não com sua avó materna, ele nem entenderia se eu partisse para esse lado, fui falando coisas sobre a dor que ele estava sentindo, mas que tudo ainda iria acabar bem, e principalmente bem para ele. Ele voltou abraçado comigo para a sala, e felizmente aquela audiência terminou. Não tive mais contato com eles, mas sempre que retorno naquela cidade, passo apenas o nome do garoto no setor de informações do Foro e graças Deus nunca vi novo processo o envolvendo, espero que ele esteja bem, feliz e livre das disputas que envolveram sua vida.