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A banalização do ódio: das trincheiras do mundo online à intolerância do mundo real 

A banalização do ódio: das trincheiras do mundo online à intolerância do mundo real 

É indubitável: o ódio na sociedade em rede transborda e encontra um sem fim de interlocutores mais apaixonados – ou mais odiosos – que os primeiros, os quais substituem facilmente o diálogo racional pela torcida ilógica, o encadeamento de ideias e argumentos pela adjetivação quase sempre ofensiva ao que discorda, bem como a projeção coletiva de humanidade pela paixão do ego e dos projetos individuais. 

Seja qual for a discussão nos verdadeiros campos de batalha da alterativa on-line de mundo – direita e esquerda, refugiados e fronteiras, adeptos do isolamento social ou da ideia de que ‘a economia não pode parar’ –, ela é permeada pelo ódio incessante e incandescente. As raízes desse ódio, por sua vez, devem ser entendidas como antropológicas, e não de maneira superficial. 

Nessa linha de raciocínio, o ‘outro’ – figura sobre a qual “o imperativo categórico da moral entre em confronto direto com o medo do “grande desconhecido (…)” (BAUMAN, 2017, p.104), quase sempre entendido como distante de “nós”, e que na verdade não está, na medida em que a complexa convivência em sociedade reclama o compartilhamento contínuo das experiências de vida sobrepostas, é motivo de repulsa, alimentando as já expostas fissuras do tecido social.

Tal assertiva encontra respaldo nos infelizes exemplos históricos dos séculos vividos, sendo imprescindível abordar o nazi-fascismo de ontem e nos questionarmos sobre a erupção de ódio, intolerância e preconceitos de toda espécie por parte de governantes atuais em seus projetos de poder antidemocráticos, isto é, sobre o nazi-fascismo de hoje. Teria ele despertado ou nunca chegou a dormir?

No Brasil, desde a sua concepção, foi difundida a crença generalizada – a partir de um mito fundador –, que este país seria o paraíso na Terra, afinal, vivemos em uma “democracia racial”, somos um povo pacífico, ordeiro, alegre e trabalhador. Na expressão do historiador Leandro Karnal, “o quadro pintado é idílico” (KARNAL, 2017, p. 17).

Entende-se, aqui, a palavra mito no sentido etimológico e antropológico, como bem os definiu a filósofa brasileira Marilena Chauí: “Ao falarmos em mito, nós o tomamos não apenas no sentido etimológico de narração pública de feitos lendários da comunidade (isto é, no sentido grego da palavra myhtos), mas também no sentido antropológico, no qual essa narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade” (CHAUÍ, 2001, p. 6).

No entanto, a realidade do mundo off-line, com sua violência cotidiana, estrutural e muitas vezes banalizada, somada ao ódio escancarado nas redes sociais, nos evidencia um cenário contrário, apesar de termos dificuldades em assumir isso. Sendo assim, procura-se através de uma interpretação ilusória negar o caos, a violência, o preconceito e a intolerância dos semelhantes, atribuindo tal responsabilidade sempre ao diferente, ao estrangeiro, ao defensor do partido político oposto, à pessoa de classe econômica distinta, em síntese, ao “outro”. 

Nesse sentido, o filósofo norte-americano Jason Stanley, através de profunda reflexão histórica, afirma que “o sintoma mais marcante da política fascista é a divisão. Destina-se a dividir uma população em “nós” e “eles”” (STANLEY, 2018, ebook). E é exatamente assim que a sociedade brasileira – talvez a humanidade – tem encarado os problemas centrais, omitindo-se da responsabilidade do ódio e da violência externalizada por seus pares, imputando-a sempre ao diferente, negando a concepção de mal do ‘eu’ e transferindo-a sempre ao mal alheio. 

É salutar, todavia, entender: ao mesmo tempo em que o ódio (aqui entendido como afeto humano e cultural) promove a divisão e a segregação entre os diferentes, este é capaz de conferir identidade a um grupo. Uma vez conferida a identidade e a aproximação de pessoas através de suas ideias, ainda que absurdas, intolerantes e antidemocráticas, as opiniões emitidas e confirmadas pelo grupo de maneira sistemática se transformam em uma verdadeira “câmara de ressonância”, isto é, em uma bolha de confirmação epistemológica, conferindo, assim, uma aparente credibilidade a discursos de ódio.

No curso da história da humanidade, observou-se a criação de elementos para o direcionamento do ódio público, seja como instrumento de coerção ou de manipulação das massas, pela mídia ou através de atores sociais importantes, como a classe política. Segundo tal leitura, torna-se substancial odiar a ‘pessoa certa’. 

Exemplo fidedigno é o episódio ‘Odiados pela nação’ do seriado britânico Black Mirror, dirigido por James Hawes e distribuído pela Netflix, no qual através do ‘jogo das consequências’ pessoas são votadas diariamente, por meio de uma rede social, para virarem o alvo da vez. O jogo consiste em:

  1. Escolher um alvo;
  2. Postar nome e foto da pessoa com a hashtag “MorteA”;
  3. O alvo mais votado é assassinado às 17h de cada dia.

Analogicamente, aproxima-se de um processo penal julgado através das redes sociais, cuja condenação tem a pena de morte como consequência. 

Como é notório, a reverberação do ódio online produz engajamento e, dia após dia, a popularidade e as menções aumentavam, ainda que a confirmação da morte das pessoas escolhidas estivesse diretamente ligada ao aludido jogo. É interessante notar, no episódio, o diálogo de uma das muitas responsáveis por usar a hashtag com as investigadoras, na medida em que a primeira nega ter desejado a morte àquela pessoa e defende-se sob a égide do uso da liberdade de expressão. 

Sem adentrar à consequência final do episódio, a crítica genial reside no fato de que o problema não está nos escolhidos pela votação, os quais foram linchados virtualmente por algum erro que cometeram sem a mínima chance de contraditório, mas sim, em quem odiosamente escolhe e aponta, sem qualquer filtro, senão o ódio.

Nesse caso, a arte imita a vida. Todos os dias há algum escolhido nas redes sociais, em razão de alguma infeliz frase dita, alguma atitude equivocada e que desagrada um grupo ou por conta do ódio puro e simples, destilado de maneira virtual. É nesse momento que nos deparamos com o paradoxo da tolerância de Karl Popper: como dentro do discurso da tolerância aceitar o intolerante? Como suscitar a liberdade de expressão para expressar o ódio? A liberdade de expressão deve ser absoluta? Dentro da concepção aqui adotada, a resposta negativa se impõe. 

Seguindo tal linha de raciocínio, a propagação do ódio como afeto humano, condição da cultura e da política humana, deságua no Direito, entendido, portanto, como instrumento de repressão e resistência. O arcabouço normativo evolui com o tempo, na medida em que Documentos e Tratados Internacionais se ocupam da temática, bem como se tipifica – elegendo o Direito Penal para dar uma resposta – comportamentos humanos motivados pelo ódio ao diferente, como: os crimes contra a honra, discursos intolerantes, a homofobia, o racismo, a xenofobia e o feminicídio, 

A despeito de todo o aqui exposto, a banalização do ódio, em alusão evidente ao conceito apresentado por Hannah Arendt, em sua obra Eichmann em Jerusalém, o qual foi concebido em razão dos horrores provenientes do holocausto, não deve ser compreendido como um produto de forças externas, demoníacas ou atribuída exclusivamente ao outro distante do “eu” e, sim, como afeto humano passível de coerção pelo Direito – conferindo proteção aos direitos fundamentais individuais – e de consenso democrático, adquirido através da educação. Talvez, assim, com a atribuição de responsabilidades penais e o estabelecimento de limites balizadores, tal sentimento possa ser identificado e o fluxo de ódio interrompido, seja ele real ou virtual. 


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017;

BLACK MIRROR: Temporada 03, Ep. 06 – Odiados pela Nação. Direção de James Hawes. Reino Unido: Netflix, 2016. (89 min.);

CHAUÍ, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. 2001. Disponível aqui.

KARNAL, Leandro. Todos contra todos: o ódio nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Leya, 2017;

SILVA, Júlio César Casarin Barroso. Liberdade de expressão e expressões de ódio. Revista Direito GV. São Paulo. v. 11. n. 1. p. 37-64. Jan./jun., 2015; 

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. E-book. São Paulo: L&PM, 2018, paginação irregular.


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