A cegueira deliberada e os crimes tributários
Por Daniel Kessler de Oliveira
Constitui uma premissa basilar no estudo de nosso Direito Penal, a impossibilidade da responsabilidade penal objetiva, ou seja, a responsabilidade penal de um indivíduo, necessariamente, deve advir de dolo ou, ao menos, culpa.
Pela disposição do parágrafo único do Art. 18 do Código Penal, para a responsabilização penal do agente é imprescindível a demonstração do dolo, podendo, em casos excepcionais, quando haja disposição legal neste sentido, ser punido à título de culpa.
Portanto, regra básica e de fácil compreensão: a prática de um crime exige dolo, somente sendo permitida a punição por culpa nas hipóteses em que haja previsão da modalidade culposa.
No entanto, o anseio punitivista daqueles que enxergam no Direito Penal o salvador de todos os males da sociedade, vem tornando questões elementares extremamente complexas, ao relativizar determinados conceitos básicos.
Assim, a discussão em torno do Direito Penal moderno, quando não caminha para uma responsabilidade objetiva, flexibiliza o conceito de dolo.
Trazendo a lógica para os crimes contra a ordem tributária, temos uma enormidade de situações que vem se apresentando complicada, na medida em que o manejo conceitual vem ampliando a aplicação do dolo.
Não resta dúvida de que os crimes elencados na Lei n.º 8.137/90 têm como elemento subjetivo essencial, o dolo. Sendo assim, a prática daqueles delitos exigem a vontade dirigida a um fim por parte do agente, consistente na intenção de, mediante algum agir indevido, suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social.
O contorcionismo do dolo eventual já fora objeto de análise em colunas anteriores, não necessitando, em que pese mereça, nova análise.
Entretanto, outra tendência na aplicação do direito penal moderno vem sendo a teoria da cegueira deliberada, que, se mal aplicada, pode conduzir a graves problemas no âmbito de imputações penais.
Esta teoria, tem sua origem reportada ao direito inglês, no ano de 1861 e foi utilizada nos Estados Unidos já em 1899 e está em plena expansão em termos de direito penal econômico.
Em breve síntese, a teoria tenta imputar a prática de crimes contra aqueles indivíduos que, voluntariamente, fingiram desconhecer as origens ilícitas de bens ou valores dos quais tiraram proveitos.
Em linhas gerais, a teoria da cegueira sustenta haver o dolo naquele indivíduo que, voluntariamente, se coloca em uma situação de desconhecimento para, com isto, tentar furtar-se de sua responsabilidade penal.
Ou seja, o agente que quis não ver, permitindo que o crime ocorresse, pode vir a responder pela prática delituosa.
Inúmeros são os debates que podem eclodir desta aplicação, sob os mais variados aspectos.
Num primeiro momento, se o agente tem conhecimento do ilícito, estando em união de vontades com os executores e voluntariamente se coloca em uma situação de não agir, poderia ser enquadrado tranquilamente em alguma das hipóteses de coautoria ou participação, sem necessidade de recorrer à outras teorias.
Se o agente tem um dever legal, pela sua função, de impedir ou denunciar a prática de um crime e se omite, voluntariamente, temos um delito omissivo impróprio.
Então aonde se pretende aplicar a cegueira deliberada? Não necessitando de uma nova aplicação do dolo em casos como os indicados acima, nos parece que a aplicação deste instituto possa estar caminhando para as hipóteses em que o agente não verificou uma prática de um crime que deveria ter visto, que poderia, perfeitamente, ter tido conhecimento e nada fez.
Entretanto, casos em que o agente fora descuidado, violando um dever de cuidado objetivo que lhe era imposto, deixando de tomar determinadas cautelas, resta configurado um agir culposo.
E este parece ser o problema, a utilização do dolo eventual e da cegueira deliberada para a punição em situações perfeitamente caracterizadas como culpa.
Importa a relação entre ambos, na medida em que a cegueira deliberada apenas tem sua aplicação através do dolo eventual, pois sua principal finalidade é atribuir a responsabilidade penal ao indivíduo que conscientemente colocou-se em ignorância com a finalidade de esvair-se de sua responsabilidade no futuro pela conduta ilícita cometida (BECK, 2011, p. 124).
Com isto, se cria uma responsabilidade objetiva do agente, na qual ele poderia ter conhecimento, deveria ter visto, tinha que saber e, por isso, responde como se quisesse aquele resultado.
Saber se o indivíduo quis não ver ou simplesmente não viu, será algo de extrema dificuldade prática e, para além da criação da responsabilidade penal objetiva, rumará para a inversão do ônus probatório no processo penal.
O dolo eventual foi surgindo em alguns casos e ganhando cada vez mais adeptos e aplicações que, baseando-se em premissas equivocadas, aplicam o instituto de forma desenfreada e desconectada dos seus critérios elementares.
A cegueira deliberada parece querer trilhar o mesmo rumo, aplicando-se a crimes “clássicos” como receptação, aos atos de improbidade, chegando aos crimes contra o sistema financeiro, e podendo ter sua expansão potencializada.
Em se tratando de crimes tributários, tal teoria começa a ganhar adeptos, na medida em que, muitas vezes, as teses defensivas giram em torno da ausência de dolo.
Pensemos o empresário que desconhece questões tributárias e confia em um de seus funcionários, em um contador ou advogado o planejamento tributário de sua empresa, posteriormente, se percebe que foram adotadas práticas indevidas e com isto houve supressão ou redução de tributos.
Aí, pensemos, por ele ser o dono (sócio ou responsável) da empresa deverá ter conhecimento de tudo o que ocorre no âmbito desta. Perfeito, mas não olvidemos que sua responsabilidade penal, exige o dolo ou a culpa (em casos excepcionais).
Mas se ele não tomou os cuidados em quem confiava, deve responder pelo seu descuido. Novamente, perfeito. Entretanto, descuido, negligência são elementos configuradores de um agir culposo.
Mas se não for assim, todo e qualquer empresário alegará desconhecimento e restará impune. Pronto, chegamos ao ponto que, na maioria das vezes justifica a aplicação destes institutos. O ponto do utilitarismo processual, dos fins justificando os meios, da inversão do ônus probatório, do Acusado tendo de provar sua inocência e, aqui, não há mais o que ser argumentado, pois para se atingir a este nível do debate, preceitos básicos e valores indispensáveis já foram negados e nada mais se constrói.
Não esquecemos, não se combate a impunidade desrespeitando garantias! Por isto, tal instituto, deve ser concebido com cautela e sua aplicação não pode ser banalizada, sob pena de muitos abusos e injustiças.
NOTAS
[1] BECK, Francis Rafael. A Doutrina da Cegueira Deliberada e sua (In)Aplicabilidade ao Crime de Lavagem de Dinheiro. in Lavagem de Dinheiro/Organizadores Miguel Tedesco Wedy e André Luis Callegari. São Leopoldo – RS, Editora Unisinos, 2011, p. 124.