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A colaboração premiada vista como medida de política criminal


Por Vilvana Damiani Zanellato


Considerando-se estudo que se elaborou, há poucos dias, para fins de breve publicação jurídica, concernente a colaboração premiada, mais uma vez, será abordada questão diversa das “10 Medidas contra a Corrupção”, cuja análise, logo e oportunamente, voltará a figurar neste Canal.

Muitos questionamentos podem ser articulados sobre o instituto da colaboração premiada, porém, ainda que se venha a polemizar – o que se avalia como saudável em canais como o que ora se participa –, não há como se deixar de mencionar a sua utilização como instrumento de política criminal.

Meio de obtenção de prova, a colaboração premiada, antes da edição da Lei nº 12.850/2013, já tinha amparo no Direito Comparado (Espanha, Estados Unidos da América [plea bargaining], França, Itália [chiamata di correo], México, Reino Unido) e na legislação doméstica, além de ter sua legitimidade reconhecida pelos Tribunais Superiores (v. g., HC 90.688/PR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. em 12-2-2008; e HC 97.509/MG, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, j. em 15-10-2010). Pode-se citar, como exemplos, as Leis dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, dos Crimes Hediondos, de Lavagem de Capitais, de Proteção a Vítimas, Testemunhas e ao Réu Colaborador, do Narcotráfico, Antitruste, Anticorrupção Empresarial e, notadamente, o Código Penal, que prevê o arrependimento eficaz (art. 15) e o posterior (art. 16), bem assim a atenuante de confissão espontânea (art. 65, III).

A Lei do Crime Organizado foi além (e também teve sua legitimidade reconhecida pelo STF – HC 127.483/PR, Rel.  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, j. em 27-8-2015). Adotou a linha negocial, de voluntariedade e de utilidade para a persecução penal.

Apesar da insistência em sentido contrário, os operadores do Direito que dela já participaram sabem que nenhum ato, cláusula penal, condição etc. é imposta ao colaborador, pois os termos são efetivamente acordados de modo voluntário e com a total participação e assistência do defensor. A voluntariedade está imbricada com a natureza negocial da colaboração premiada.

O alcance de maior ou menor benefício ao colaborador reside na cumulação (não necessária) de resultados a demonstrar sua utilidade, como a identificação (e por que não?) de outros autores ou partícipes da organização criminosa e demais infrações penais perpetradas; o desvendamento da estrutura organizacional tanto hierárquica quanto referente à repartição das atividades e funções criminosas; a prevenção concernente ao cometimento de outras infrações penais; a recuperação do produto ou proveito decorrentes das práticas delituosas, mesmo que parcial; e a localização da vítima com a integridade física preservada.

Para além dos benefícios de cunho minimamente punitivo, inúmeros direitos são reconhecidos àquele que se presta a colaborar com a persecução penal, a saber: medidas de proteção previstas na Lei nº 9.807/99; ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes;  participar das audiências sem contato visual com os outros acusados; não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito; cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.

Independentemente de concordar-se ou não com o instituto, certo é que não se pode deixar de aplicar os benefícios dele advindos àqueles que se enquadram na qualidade de colaborador.

Enfatize-se que o ato, que deve ser homologado pela autoridade judicial, pode gerar os seguintes benefícios: perdão judicial; redução da pena; substituição da sanção privativa de liberdade por restritivas de direitos; suspensão do processo; sobrestamento do oferecimento de denúncia; não oferecimento de denúncia; progressão de regime prisional em tempo menor de cumprimento de pena.

A concessão desses benefícios, não restam dúvidas, resulta de indiscutível medida de política criminal, que, de outro lado, não pode deixar de salvaguardar também (e sempre) direitos fundamentais que, eventualmente, possam vir a serem feridos no acordo.

Por isso, e atento à possibilidade de o colaborador faltar com a verdade e imputar falsamente prática criminosa a outra pessoa, o legislador previu, no art. 19 da Lei nº 12.850/2013, o crime de delação caluniosa, o qual contém como preceito secundário a pena de reclusão de 1 a 4 anos, mais multa, para a aquele que “Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas”.

Não há interesse público em se incriminar inocentes. Há interesse em que, além do auxílio na cessação da perpetração de crimes graves, aquele que praticou algum delito ligado às atividades de organizações criminosas rompa voluntariamente com o mundo delituoso.

Nem se diga que a colaboração premiada é fruto da incompetência do aparelho estatal em conduzir e solucionar investigações criminais. A constatação de que na atualidade há novas organizações criminosas, que atuam 100% às escondidas, sem testemunhas, de forma dissimulada e virtual, como se lícitas fossem e, devendo o Estado respeitar os direitos fundamentais de todos os cidadãos, incluindo os que compõem essas associações aparentemente legais, legitima a colaboração como forma de desvendar essas atividades delituosas, que parecem possíveis apenas com o auxílio de quem delas conhece e/ou delas participa, independentemente da estrutura estatal. Se se tornou necessário procedimento desse jaez é sinal de que o contexto social hoje dele não prescinde. Não se trata de falta de competência estatal, mas sim da indispensável participação social no aprimoramento da persecução penal e nas questões relacionadas à segurança pública, em prol de toda a coletividade e assim visualizado e concretizado, em boa hora, pelo legislador.

Violação à ampla defesa não há se a voluntariedade do colaborador somente é aceita se seu defensor estiver presente. No mais, cessado o sigilo, os advogados dos possíveis corréus também poderão – e deverão – exercer amplamente suas defesas (defesa técnica e autodefesa). Não há também que se falar em inobservância do contraditório, que, no caso, é diferido. E o fato de o colaborador não se utilizar do direito de permanecer silente não significa que tenha referida garantia subtraída. Pode sim dela utilizar. Basta assim o querer. A opção é do colaborador e não do Estado: ou bem ele colabora, ou bem ele se mantém silente, como já ocorre em qualquer persecução penal. O mesmo acontece com quem resolve confessar a perpetração de um delito, seja ele praticado apenas pelo próprio agente, seja ele cometido por diversas pessoas. Apesar de possuir mesmo cariz, não há críticas à usual e antiga confissão (colaboração), que pode resultar na atenuação da pena (premiada), na segunda etapa da dosimetria penal.

E, sim, pode o colaborador se arrepender e retratar-se.

O mais importante: não haverá condenação com fundamento exclusivo no acordo de colaboração premiada, que, ademais, repita-se, não é “meio de prova”, mas “meio de obtenção de prova”.

Ora, além da pena cominada em lei e a reprovabilidade da conduta, apesar da prática antijurídica e culpável de um tipo penal, também pode decair a necessidade da pena desde o ponto de vista de seus fins, por política criminal, sem que com isso se ofenda a direitos e garantias fundamentais. A conclusão e o importante desvendar de grandes organizações criminosas à toda sociedade podem decorrer do ato da colaboração premiada, legitimando, assim, o reconhecimento do perdão judicial ou até mesmo que não se formule denúncia em desfavor do colaborador, sem que se fira o princípio da obrigatoriedade por parte do Ministério Público e outros direitos fundamentais de quem quer que seja.

Se é necessária maior efetividade por parte do Estado nos procedimentos penais, em razão da macrocriminalidade desenvolvida especialmente pelas organizações criminosas, não se vê problema de utilizar-se desse instituto jurídico, já existente, há 3 décadas, no ordenamento jurídico pátrio, e que foi melhor regulamentado pelo legislador, oferecendo ao colaborador, desde que respeitada a voluntariedade, a utilidade e a instrumentalidade negocial, benefícios.

Defende-se (sem temor às críticas e represálias dos que não coadunam com o mesmo pensamento), portanto, que os benefícios da colaboração premiada são frutos de política criminal, cuja medida respeita e proporciona o equilíbrio entre a salvaguarda das liberdades individuais e a eficiência estatal que reflete nos direitos e nas garantias fundamentais da coletividade como um todo, em especial no pertinente à educação, à saúde, à segurança pública, ao saneamento básico, que são assaltados, à inúmeras mãos, constantemente, pelas organizações criminosas.

Não se mostra, de outro lado, defensável a ideia de que, por questões éticas(?) perante as organizações criminosas, não deveria seu integrante colaborar e beneficiar-se com um sistema menos punitivo e tão reclamado nos dias atuais.

Entre a sociedade e as organizações, que se opte pela primeira, e a ela se integre, estruture-se e organize uma parceria!

_Colunistas-Vilvana

Vilvana Damiani Zanellato

Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestranda em Direito Constitucional. Professora de Direito.

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