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A criminalização de condutas atípicas e a rotulação constante


Por Iverson Kech Ferreira


Analisando as camadas sociais se pode facilmente observar que são divididas castas muito bem definidas, em seu ínterim, por diferenças basilares que demonstram o status quo de cada um na parte que lhe cabe na sociedade.

As mazelas de um local inóspito recheado de casebres à beira de um córrego ou rio está muito distante dos condomínios de luxo de altos muros e milionários investimentos, bem como os cortiços nos bairros estão cada vez mais próximos aos isolados e temidos guetos da atualidade. Essa distância caracteriza e de forma assertiva traz a certeza da segurança para alguns, que se alocam atrás dos grandes muros, defendendo-se contra todos a partir de seus apetrechos de segurança, e, por outro lado, demonstra claramente que a sociedade que hoje existe diante de nós e da qual todos fazemos parte é dominada pelo medo e temor profundo do estranho que se separa por distintas classes.

Entretanto, a aproximação dos guetos para dentro dos bairros, cortiços e da vida social traz uma síntese de experiências que, a priori, se destacam na vivência dos indivíduos que passam a ter um comportamento valorado pelo novo agrupamento que agora permeia seus encalços.

A formação da cidade, historicamente, rodeia o seu centro e sempre, em fase de expansão e crescimento, distancia-se cada vez mais de seu núcleo, criando vizinhanças que se assemelham e se aglomeram, causando uma nova comunidade dentro do âmbito social, que com o passar dos tempos, passa a ser tão completa quanto o centro da grande cidade.

Nesses locais, diversos são os sub destacamentos que formam e lideram, de certa maneira, as pessoas. Os discursos dos religiosos de várias causas e diversas doutrinas, como a igreja e templos, entre outras crenças que diversificam o ser humano e espalham sua cultura pelos bairros e guetos, difundindo um sentimento de aceitação e porque não, de resignação. Entre esses motivadores do comportamento real das pessoas que vivem distantes dos grandes centros, rodeando-o, está também o conhecimento e senso comum, o empírico sentido das situações que trazem um grande avanço àquilo que chamamos de argamassa social ou solidariedade social.

Muitas famílias convivem (principalmente em favelas e guetos) difundindo experiências trazidas por seus antecessores e mesmo até por vizinhos e suas crenças particulares, que, diversas vezes, em muito diferem entre as famílias.

Essa formação é estruturada por uma endêmica e relativa valoração dos saberes regionais, que transpassam as camadas sociais e algumas vezes, chegam a atingir outras classes mais abastadas. Isso ocorre por um simples motivo: a vivência e simples convivência dentro dos grandes centros da cidade, a relação patrão/empregado, o tratamento profissional entre pessoas muito diferentes econômica e socialmente. Nesse encontro de pessoas nas regiões centrais das cidades não se pode notar, a priori, as distinções entre os grupos que se definem quando estão em união e que se desmontam perdendo sua identidade quando estão separados. O enfraquecimento da identidade no interior do grupo desconhecido é evidente, porem toma uma certeza ou uma segurança a mais quando em conjunto, todavia, dentro dos centros das cidades é cada um por si.

Também, há aqui, nessa confluência de experiências entre as classes, ganhos intermináveis de saberes, empíricos e estruturados pela vida comum e sua prática, de diversas culturas e casos inusitados, de contos e uma experimentação de um saber próprio que nunca chegaria ao conhecimento das classes dominantes. Numa troca de conhecimento e vivência, mesmo que mínima ainda, pode estar a chave para a aceitação e para a empatia, tão em falta nos dias modernos.

Pode-se notar que as condutas desviantes dentro dos grandes centros são condutas que tentam afirmar ou confirmar a postura de certos indivíduos perante a outros pertencentes do mesmo espaço, mas são vistas como perigosas formas de ameaça a uma incólume paz pública até então. Ainda que tais atos não firam nenhuma lei positivada nem qualquer ato típico seja demonstrado, esses diferentes são os infratores de uma paz que inexiste em uma sociedade de temor, que não possui em si o cerne politico e social de fato, onde há a apenas a autocracia nos atos individuais de cada um.

Esse pavor causa um sentido superestimado nas pessoas que agem de forma idiossincrática contra o que lhe é estranho, diferente e anticultural/amoral. Dessa forma, tradicionais bairros como os descritos, as favelas e guetos possuem em seu cerne a predisposição para atentar certas atitudes com ânimo de aceitação ou até resignação, mas quando fora de seus círculos de confiança, os atos antes tidos como aceitáveis passam então a ser rotuláveis (Becker, H.S.).

Desse estigma causado em um local comum para todos, mas onde ninguém possui deveras identidade alguma, pois o centro das cidades é o lugar onde não se conhece exatamente ninguém porem se convive com todos, é o local dos estigmas e das rotulações que são colocadas em determinados grupos ou pessoas que possuem um rótulo incriminador, separadas pelos órgãos de controle para a punição diária. Note que, em uma investigação zetética certos atos podem influenciar o animo dos componentes de um determinado grupo que se ajunta nas cidades, porem, mesmo ainda não sendo valorado como criminoso, esses atos são incompatíveis com a cidade e seu grande agrupamento, não são atitudes aceitas.

Entretanto, muitas vezes, atitudes similares são vistas nos bairros, favelas e guetos e não causam medo, furor ou contrariedade dos presentes, mas sim, uma aceitação ou certa resignação.  É assim que são formadas as leis que incriminam por nossos legisladores nos dias atuais e dessa forma tais normas passam a criar mais e mais grupos ou pessoas criminosas, pessoas essas que para o sistema devem ser vigiadas, devem ser observadas e precisam ser controladas. (Baratta)

Interessa para nossos estudos entender a reação das pessoas, quando dentro de sua zona de conforto, bairro, comunidade, gueto ou favela possui um outro olhar para algumas atitudes todavia, ao inserir-se no grande agrupamento toda essa argamassa social ou solidariedade social desaparece e o motivo incriminador é o que impera.

Ao analisar certas atitudes de alguns integrantes de grupos dentro das favelas, mesmo aquelas permeadas por novas Unidades Pacificadoras do Estado, para o núcleo do grupo, ou seja, a maioria das pessoas notam e avaliam como atitudes normais e nada ameaçadoras ou constrangedoras.

Entretanto, essas mesmas atitudes fora do grupo, em um local como o grande centro da cidade, são vistas como marginais mesmo não quebrando nenhuma regra imposta pelas leis criminais.

Regras e normas de situações assim já existem, como exemplo, na cognição de servidores da lei que patrulham o centro. Em determinados lugares de lazer, próprios para a prática de esportes dentro dos centros, grupos não podem desfilar em seus skates por uma rotulação dos jovens que usam skates, associando-os às drogas ou a qualquer outro tipo de desvio. Todavia, em seus bairros não são proibidos da prática esportiva, muito menos ainda, sofrem algum tipo de coação por parte da polícia.

Essa maneira de enxergar situações como a quebra de algum categórico moral ou de costume é algo normal na sociedade, quando reunida em seu grande agrupamento, o centro.

Mesmo as pessoas que convivem com certas práticas nos bairros muitas vezes (Bauman) desaprovam determinadas práticas quando não estão em seu meio de afinidade, ou seja, em seu grupo. Dentro dos bairros, guetos, favelas, comunidades, condomínios, a lei é outra e a moral é comandada pela maioria. Nos centros a minoria silente são todos que não se conhecem, não possuem afinidade nem solidariedade social, carecem de empatia, mas mesmo assim, não desejam ser vistos como diferentes pelos outros, negando qualquer atitude tida como desviante apontada por alguém da multidão, temendo ser por sua vez, também estigmatizado como desviante (Elias).

Dessa forma o poder de criar e engendrar leis que tornem o comportamento de alguns tidos como criminoso é uma crescente em nosso legislativo e em nossa sociedade, por medo e aflição social, toma as rédeas de uma criminalização desnecessária, chamando para o ato aquele que deveria fazer o seu papel somente quando realmente e se necessário: o Direito Penal.

Iverson

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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