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A criminologia atuarial como criminologia do “fim da história”

por Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

“Las personas malvadas existen. Nada es útil, excepto

separarlas de las personas inocentes.”

(J. Q. Wilson)

Na história do pensamento jurídico-penal da humanidade forjaram-se diversas teorias e discursos. Alguns negam qualquer legitimidade à coerção penal do indivíduo (doutrinas abolicionistas); outros procuram justificá-la a partir de perspectivas absolutas (retribucionistas) e relativas (utilitaristas). Tais doutrinas de (des)legitimação da sanção penal foram (des)construídas acompanhando o movimento das ideias filosóficas e criminológicas que transcorrem num vínculo indissociável com a organização do poder político e econômico. É neste sentido que se pode agregar, na contemporaneidade, a estas formas clássicas de pensar o fenômeno criminal, aquilo que pode ser chamada de “nova penalogia” que vem sendo delineada pelo modelo neoliberal, fazendo surgir a chamada Criminologia Atuarial.

Criminologia Atuarial

A Criminologia Atuarial apoia-se na lógica econômica para, a partir de números e estatísticas (que permitem a avaliação mesurada de objetivos quantitativos e que proporcionam vislumbrar uma decisão totalmente racional), buscar por meio da pena atingir objetivos econômicos. Neste modelo, a criminalidade é compreendida enquanto fruto de um erro de cálculo, de um erro de antecipação. Como assevera Garapon (2010), o presente deixa de ser o tempo de referência, cedendo lugar ao futuro, mas um futuro antecipado e planejado nas suas mais negras possibilidades.

O surgimento da Criminologia Atuarial revela a passagem de um modelo que buscava punir, intimidar ou reabilitar indivíduos – conforme a doutrina clássica de justificação da pena seguida – para um modelo que tem por objetivo “utilizar a pena criminal para o sistemático controle de grupos de risco mediante neutralização de seus membros salientes, isto é, a gestão de uma permanente população perigosa, pelo menor preço possível.” (DIETER, 2013, p. 100, grifos do autor).

Dentro dessa lógica, parte-se da constatação de que há poucos delinquentes habituais de existência inevitável e natureza incorrigível, que são os responsáveis pela maioria dos crimes registrados. Paralelamente, desaparece a ideia de que a criminalidade é uma patologia que pode ser afrontada com “tratamentos” adequados e prioriza-se a compreensão de que a delinquência é um fenômeno social normal. Nesse quadro, as palavras de ordem são “gestão” e “distribuição” de riscos (BRANDARIZ GARCÍA, 2007).

Em um contexto tal, assume relevância apenas construir um perfil dos criminosos (perigosos), de modo que eles possam ser identificados e classificados pelos agentes da repressão penal e, reflexamente, neutralizados pelo maior período de tempo possível dentro do sistema prisional, o que promoveria uma drástica redução dos índices gerais de criminalidade sem que reformas estruturais ou grandes investimentos em segurança pública fossem necessários. Basta, nesse sentido, viabilizar a incapacitação física de segurança máxima para os criminosos reincidentes e a vigilância virtual e tecnológica de baixo custo para os delinquentes eventuais (DIETER, 2013).

Na realidade norteamericana – onde os discursos atuariais foram gestados e “vendidos” ao restante do mundo como panaceia para a gestão da criminalidade – esse câmbio de perspectiva foi o grande responsável por “salvar” a prisão, mais uma vez, de suas contradições performáticas: a penitenciária volta a se afirmar “como instituição indispensável para o controle social exclusivo dos piores membros das classes perigosas, desta vez ressignificados pela retórica do risco.” (DIETER, 2013, p. 102). A lógica econômica que subjaz a este pensamento é evidente: a partir da ideia de incapacitação dos criminosos habituais de alto risco, evita-se que as vagas nas prisões sejam ocupadas pelos delinquentes eventuais ou habituais de baixo risco. Para tanto, basta que perfis seguros sejam traçados. Não se mostra imprescindível nenhuma alteração legislativa ou investimento público substancial em matéria de segurança.

Isso significa que, da ideia de “má intenção”, o Direito Penal neoliberal passa a se preocupar majoritariamente com a “imprudência”, o “defeito de vigilância”, o que significa, em última análise, a preocupação com a falta de antecipação do controle. Garland (2008) observa que, se no passado a criminologia se preocupava com o crime de modo retrospectivo e individual, de modo a isolar o ato ilícito individual e atribuir-lhe uma pena ou um tratamento, hoje o crime é visto de modo prospectivo, e em termos agregados, como forma de calcular riscos e estabelecer medidas preventivas.

A Criminologia Atuarial, nesse sentido, aplica aos comportamentos humanos as técnicas estatísticas desenvolvidas para as finanças e os seguros para calcular os riscos (BRANDARIZ GARCÍA, 2007; GARAPON, 2010). A ideia é viabilizar a neutralização eficiente dos grupos considerados perigosos, ou seja, “os violentos com forte tendência à reincidência”, que passam a ser considerados – novamente na léxica norteamericana – “predadores sociais” e que se transformam, em razão disso, em “alvo prioritário de todo o aparelho punitivo.” (DIETER, 2013, p. 113-114).

Como pano de fundo dessas práticas, evidencia-se a preocupação cada vez maior com o “custo” da justiça e com a necessidade de contenção dos gastos públicos (BRANDARIZ GARCÍA, 2007), afinal, “ao contrário dos profissionais de saúde, os atuários não têm, em princípio, compromisso ético com o tratamento do sujeito e, por isso, não precisam explicar a prática de atos violentos. Basta prevê-los.” (DIETER, 2013, p. 140).

Essa nova penalogia que se funda sobre a criminologia atuarial consiste, portanto, em encontrar as características recorrentes de um comportamento humano para melhor preveni-lo. Adota-se uma perspectiva gerencialista que perpassa por três etapas: primeiramente, é preciso identificar os indivíduos com “perfil de risco”; em segundo lugar, é necessário classificar esses indivíduos em busca dos que efetivamente podem ser considerados “perigosos” ou de “alto risco”; por fim, é imprescindível a criação de mecanismos para neutralizar esses indivíduos pelo maior período de tempo possível, sem se preocupar com questões relacionadas à sua ressocialização (DIETER, 2013).

Eis, portanto, a “tônica” da Criminologia Atuarial: ao aplicar aos comportamentos humanos as mesmas técnicas de previsão que aquelas desenvolvidas para analisar os riscos, ela postula que os criminosos devem ser tratados como seres racionais, o que significa um apagamento antropológico do criminoso (GARAPON, 2010). A conduta criminosa deixa de ser compreendida como produto de influências sociais ou psicológicas que tornam o indivíduo não totalmente senhor de seu comportamento para idealizar o crime como resultado de uma conduta calculada, utilitária, que resulta de um processo ativo de escolha individual. O problema do crime passa a ser visto como uma questão de oferta e demanda, na qual a pena opera como um mecanismo de regulação do preço.

Nessa lógica, não se nega peremptoriamente a existência de dimensões extra-econômicas no homem. No entanto, considera-se que estas dimensões não são suscetíveis de uma mínima racionalidade e que, por isso, devem ser ignoradas. Assim, abandona-se qualquer pretensão normalizadora dos sujeitos, uma vez que a Criminologia Atuarial “desatiende las causas personales o sociales de su comportamento y renuncia a las medidas de tratamiento. Su finalidad fundamental es la gestión del riesgo, y para ello, se concentra en la neutralización de la peligrosidad de determinados sectores.” (BRANDARIZ GARCÍA, 2007, p. 86).

Aqui reside aquilo que Garapon (2010) considera a grande catástrofe do método atuarial, qual seja, a completa descontextualização e a-historicização dos eventos, o que permite falar no surgimento de uma “criminologia do fim da história”, já que ela não tem mais a ambição de reabilitar os criminosos, configurando-se como um modelo que perdeu toda a esperança de mudar o mundo e que demanda aos indivíduos apenas “adaptação”, repousando sobre um modelo adaptativo e eficientista.

Referências:

BRANDARIZ GARCÍA, José Ángel. Política criminal de la exclusión. Granada: Comares, 2007.

DIETER, Maurício Stegemann. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

GARAPON, Antoine. La raison du moindre état: le néolibéralisme et la justice. Paris: Odile Jacob, 2010.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

Maiquel

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