A culpa é da Constituição?
Por Daniel Kessler de Oliveira
Recentemente têm chamado muito a atenção as manifestações de algumas pessoas contra a Constituição Federal.
Estas manifestações estão expressas em redes sociais, em artigos e colunas de jornais de grande circulação e enraizadas nas mentes de muitas pessoas, inclusive de profissionais da área do Direito.
O que leva (imagino eu) estas pessoas a esta conclusão, é uma associação das garantias previstas na Constituição Federal de 1988 com uma geração de pessoas “mimadas”, que “só enxergam direitos e não deveres”, dentre uma série de outras adjetivações.
Normalmente tal crítica vem acompanhada de um saudosismo quase doentio, traçando um comparativo com tempos passados, de como as coisas funcionavam, de uma obediência às regras e às hierarquias, findando com uma afirmação de peito estufado de que as gerações sobreviveram à tudo isto e qualificando como desnecessários uma série de questionamentos que hoje são feitos.
É uma lógica de repetição pura e simples, se meu pai me batia e me tornei um “cidadão de bem”, tenho que bater em meu filho para que ele também aprende, em um juízo metafórico que bem ilustra o ponto a ser tratado.
Não entrarei aqui na discussão sobre ser certo ou errado algumas das manifestações que fizeram surgir estes comentários, pois tentarei ir além, avaliando a profundidade destas afirmações que culpam a Constituição pelos problemas que hoje possuímos.
Primeiramente, só tenho a agradecer que a geração que viveu as décadas de 60 e 70 do século passado, não possuía apenas pessoas com esta cultura, com a mentalidade do “sempre foi assim”, do “eu passei por isso e não morri” e mais uma série de afirmações que nos impedem de progredir, de romper barreiras e de crescer enquanto ser humano e sociedade.
Graças a uma parcela de pessoas daquela geração, os netos das pessoas que lá pensavam na lógica do “é muita reclamação por nada”, tem a liberdade de se expressar livremente nas redes sociais e até mesmo em jornais de grande circulação.
Somos uma democracia jovem, esta geração que hoje está chegando aos 30 anos é a primeira geração nascida e educada em berço (sedizente) democrático, sendo evidente que muito temos que aprender a conviver com os nossos direitos e liberdades.
No entanto, causa realmente muito espanto e, até, tristeza, ver que esta própria geração já questiona seus direitos e, mais, gerações passadas que sofreram com períodos ditatoriais ergam esta mesma bandeira.
Há muito se diz que o povo tem memória curta, mas não podemos chegar ao ponto de ignorar episódios sangrentos de uma história de autoritarismo e de negação de direitos. Se não for por amor à liberdade e respeito à Constituição, que seja ao menos em respeito àqueles que pagaram suas liberdades e, até mesmo, vidas para que pudéssemos ter a Constituição que hoje temos que a respeitemos.
As duas décadas de ditadura militar continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as mentalidades coletivas, o que faz com que o conjunto das classes sociais tendam a identificar a defesa dos direitos do homem com tolerância à bandidagem (WACQUANT, 2001, p. 10), bem como não ver com bons olhos reivindicações e questionamentos sobre as coisas impostas pelo Estado.
O problema é a desordem social que isto causa, muitos vão dizer. A estes devemos dizer que a desordem é inerente à democracia, pois durante muitos anos se pagou o preço de não se ter liberdade em nome de uma suposta “ordem social” e de um “bem maior”.
Numa democracia personalista que coloca o a pessoa humana no vértice da hierarquia axiológica, serão a autonomia, a dignidade, a liberdade da pessoa humana, com todos os direitos e prerrogativas que gravitam à sua volta, a fornecer os critérios de solução das situações concretas (BETTIOL, 1974, p. 140).
É difícil digerir a ideia de que estejamos questionando “liberdades demais”. Não consigo entender a lógica de se defender que sigam com práticas autoritárias e com normas despidas de sentido, em nome de uma suposta tradição e de uma disciplina. Estamos querendo formar cidadãos adestrados? Jovens que não tenham a coragem de questionar, que se conformem com as regras e ordens impostas por si só?
Vale esclarecer que não se está a fomentar a anarquia, tampouco incentivar qualquer espécie de rebelião sem causa, mas apenas que não tolhamos da juventude o sonho do mundo ideal e o direito de questionar e de reinvindicar os seus direitos.
Devemos comemorar que hoje podemos nos colocar em pé, nós e os nossos direitos, que por sermos humanos possuímos, independente de qualquer outra coisa, frente aos desmandos do Estado e buscar sentido de justiça em qualquer norma que nos seja imposta.
O questionamento e a livre expressão fazem parte dos direitos que duramente foram conquistados e são armas imprescindíveis na perene luta contra o abuso de poder.
Quando a sociedade questiona suas próprias liberdades, abre uma janela perigosa por onde o poder estatal passa desconhecendo limites e, como, nos ensina ZAFFARONI (1995, p. 81): “a mais elementar experiência institucional demonstra que sempre que há poder sem controle opera-se o abuso de poder.”
Não caiamos na lógica da tradição, da repetição dos atos por si próprios, que possamos aprender com os nossos erros e não desencorajar, tampouco ridicularizar, uma geração que pode usufruir de mais direitos do que se teve no passado.
Temos muito que aprender enquanto democracia, mas certamente, não será com o retrocesso da justificação da ordem que alçaremos algo positivo.
A ordem apresenta um custo, que muitas vezes não é sentido por aqueles que a defendem. É preferível uma desordem com liberdade, do que viver em uma ordem imposta e segregadora.
Não esqueçamos do que já sentenciou Ruy Barbosa: “a pior democracia é preferível à melhor das ditaduras”.
REFERÊNCIAS
BETTIOL, Giuseppe. Instituições de Direito e de Processo Penal. Trad. Manuel da Costa de Andrade. Coimbra: Coimbra Editora., 1974.
WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário: Crises, acertos e desacertos. Trad: Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.