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A cultura da violência


Por Mariana Py Muniz Cappellari


Nas últimas semanas, a mídia tem veiculado diversos fatos que, embora ocorridos em contextos diversos e com pessoas diversas, redundam em um ponto comum, ao qual tentaremos trazer à baila nesse pequeno espaço de reflexão. Fatos grotescos e repugnantes foram objeto de veiculação, como a morte de uma criança de 10 anos de idade na cidade de São Paulo, em abordagem policial, o que culminou com um tiro na sua cabeça, após furto de um veículo automotor e perseguição.

Também, na cidade de São Paulo, em atos de manifestação, visualizamos via redes sociais, imagens que apontam para a imobilização policial de uma mulher manifestante, desarmada, ao que tudo indica, mas que restou contida ao chão, chocando o fato de o policial militar se encontrar naquela ocasião em cima da mulher, segurando-lhe com força pelo pescoço, além das pernas e braços. Sendo que, semanas atrás, no Rio de Janeiro e no Piauí, foram noticiados fatos que culminaram em estupros coletivos, nos quais a vítima tratava-se de mulher e adolescente.

O que todos esses fatos carregam em comum? Seria interessante que pudéssemos refletir acerca disso, pois nos parece que todos eles fazem uso da violência a sua resolução, seja no âmbito da violência policial, seja no âmbito da violência contra a mulher, contra a criança e ao adolescente e da violência utilizada como forma de repressão ao direito humano e fundamental de liberdade de expressão e de manifestação.

O relatório mundial sobre violência e saúde, produzido pela OMS em 2002, dá conta de que talvez a violência sempre tenha participado da experiência humana, uma vez que o seu impacto pode ser visto de várias formas e em diversas partes do mundo. Para a OMS, e, de acordo com o referido relatório, a violência pode ser conceituada como

“O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.” 

Nesses termos, interessa-nos que para além do uso da força física, a OMS considera como violência aqueles atos que resultam de uma relação de poder, incluindo aí, ameaças, intimidações, negligência e atos de omissão. Além disso, quando da complexa tarefa de conceituar a intencionalidade nesse contexto de violência, o mesmo relatório dá conta de que a violência é determinada culturalmente, pois

Algumas pessoas tencionam ferir os outros, mas, com base em seus antecedentes culturais e suas crenças, não percebem seus atos como violentos.”

Não por menos, Pozzebon (2012) dá conta de que é Gauer quem situa a questão da violência presente em nosso cotidiano como um dos fenômenos sociais mais inquietantes do mundo atual, aduzindo, de acordo com as suas próprias palavras:

“A violência é um elemento estrutural, intrínseco ao fato social e não um resto anacrônico de uma ordem bárbara em vias de extinção. Está presente em todas as sociedades e civilizações contemporâneas, tanto nas grandes sociedades como nos recantos mais isolados.”

O mesmo autor, então, afirma que atualmente quando se fala em violência, deve ela ser analisada como um produto decorrente da própria estrutura da nossa sociedade contemporânea, sendo que todos nós somos responsáveis por ela, na medida em que fazemos parte deste contexto. Também, aduz assim que a violência não é algo externo a nossa cultura, mas inserida nesta, pois não há como se pensar ela isoladamente enquanto produção social, independente do modo como se articulam as relações sociais.

Mas, e o que é cultura? Não desconhecemos a dificuldade de sua conceituação e tampouco o fato de diversas abordagens existirem a respeito do tema, mas tomamos enquanto conceito para os nossos fins nesse espaço, a definição de Lola Aniyar de Castro, citada por Shecaira (2013), no sentido de defini-la como

“um conjunto de símbolos, de significados, de crenças, de atitudes e de valores, que têm como característica o fato de serem compartilhados, de serem transmissíveis e de serem apreendidos. Quando esta cultura penetra na personalidade, o faz através de um processo que se denomina de socialização.”

Não é por acaso, portanto, que Pozzebon (2012) irá referir que esta violência que compõe a cultura como um dos seus elementos nucleares, conduz a sociedade contemporânea a uma orgia de sadismo e crueldade, que acaba sendo naturalizada e banalizada, revelando o total desrespeito e desconsideração pelo outro.

Nesse ponto, todos os fatos inicialmente referidos nos parecem encontrar ancoragem nessa cultura regada de violência. Então, o que fazer? Essa pergunta é assaz utilizada quando apontada a crítica! Pois bem, o relatório mundial sobre violência e saúde citado, afirma que a violência pode ser evitada e seu impacto minimizado, pois os fatores que contribuem para respostas violentas – sejam eles de atitude e comportamento ou relacionados a condições mais abrangentes sociais, econômicas, políticas e culturais – podem ser mudados.

Shecaira (2013) ao tratar do pensamento de Émile Durkheim aponta que para o referido pensador

“haverá anomia, compreendida como ausência ou desintegração das normas sociais, sempre que os mecanismos institucionais reguladores do bom gerenciamento da sociedade não estiverem cumprindo seu papel funcional. Vale dizer, as crises decorrem, muitas vezes, do fenômeno da anomia. O crime, por sua vez, é um fenômeno normal de toda a estrutura social. Só deixa de sê-lo, tonando-se preocupante, quando são ultrapassados determinados limites, quando o fenômeno do desvio passa a ser negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social, seguindo-se um estado de desorganização, no qual todo o sistema de regras de conduta perde valor, enquanto um novo sistema ainda não se firmou (esta é a definição de anomia).”

E se estamos em anomia, palavra que tem origem no grego, de acordo com Shecaira (2013), significando sem lei e conotando a ideia de iniquidade, injustiça e desordem, ou, se estamos em crise, que esta sirva a construção de um novo sistema de regras de conduta, pautado na inclusão, na cidadania, no respeito, na independência e na liberdade, já que é a soma das nossas diferenças o que nos torna únicos.

Que possamos, talvez, e por primeiro, conversar civilizadamente sobre o que somos, conforme muito bem deu enfoque Lelei em seu blog junto ao Sul 21, quando ao citar texto do psicanalista Robson de Freitas Pereira, também objeto de publicação junto ao Sul 21, afirma reproduzindo as suas palavras:

“Tentar expulsar, eliminar o que nos angustia é impossível – Freud já nos interpretou: não somos pacíficos por natureza, civilizar é lidar com a angústia e fazer com que as palavras tenham mais valor que a espada, o revólver ou a estupidez.”


REFERÊNCIAS

POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. A ilusão do controle da violência pelo Estado na complexidade atual. In Crime e Interdisciplinaridade. Estudos em homenagem à Ruth M. Chittó Gauer. Porto Alegre: Edipucrs, 2012.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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