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A decisão de pronúncia: garantia ao réu culpado ou loteria ao réu inocente?

Por Bruno Seligman de Menezes e Mário Luís Lírio Cipriani

Costumamos dizer, na salas-de-aula de processo penal, que a denúncia é a primeira peça de defesa de um processo criminal. É ela que delimita e impõe um teto ao feito, de modo que eventual condenação somente poderá se dar até aquilo que restou descrito pelo órgão acusador, jamais excedendo tais limites.

Parece-nos claro que o mesmo se pode dizer da decisão de pronúncia, nos processos de competência do Tribunal do Júri, especialmente após a reforma de 2008 que eliminou a figura do libelo-crime. A decisão de pronúncia é o limite de discussão para o julgamento no Tribunal Popular, de modo que é inegável que ela carrega consigo um forte papel garantidor de direitos fundamentais: alguém somente pode ser condenado por aquilo que restou devidamente apontado na pronúncia.

Entretanto, a despeito do papel garantidor que referida decisão carrega – ou deveria carregar – , ela tem servido muito mais como uma passagem sem qualquer filtro, do que algo verdadeiramente criterioso. Não se há de dizer que um julgamento pelo Tribunal do Júri é “apenas” um julgamento. Além de toda a carga emocional do julgamento, há a exploração midiática, além da natural incerteza das decisões.

O que se propõe neste breve ensaio é discutir o papel do Tribunal do Júri, sob a ótica de sua previsão constitucional, a bem de promover uma interpretação conforme a Constituição Federal, visando limitar a sua incidência, na tentativa de reduzir os danos por ele causados.

A instituição do Júri é reconhecida pela Constituição Federal, no inciso XXXVIII do artigo 5º, delegando à lei a organização que melhor convier, desde que respeitada a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos vereditos e a competência para julgar crimes dolosos contra a vida. De tudo, o que parece mais importante é o fato de estar inserido dentro do rol das garantias fundamentais individuais. Dito de outro modo, a garantia é a do cidadão acusado de crime doloso contra a vida de ser julgado pelos seus pares, e não da sociedade em atrair a competência para tais julgamentos.

Diz a lei processual que o juiz deverá pronunciar o réu quando estiver convencido da materialidade e diante da existência de indícios suficientes de autoria. Entretanto, basta militar minimamente na prática penal para identificar que mesmo diante de uma prova acusatória extremamente frágil, a pronúncia se apresenta com base na dúvida. Ora, sendo o Tribunal do Júri uma garantia individual dos acusados, vai de encontro à previsão constitucional a prática que se consolidou judicialmente, de considerar, na decisão de pronúncia, o princípio do in dubio pro societate.

O in dubio pro societate acaba sendo não um filtro constitucional para sujeitar alguém ao Tribunal do Júri, mas um coringa para que o juiz possa lavar as mãos de decidir, delegando ao Conselho de Sentença a difícil decisão sobre o futuro do réu. A esse respeito, disse Evandro Lins e Silva:

“O juiz lava a mão como Pilatos e entrega o acusado (que ele não condenaria) aos azares de um julgamento no Júri, que não deveria ocorrer, pela razão muito simples de que o Tribunal de Jurados só tem competência para julgar os crimes contra a vida quando este existe, há prova de autoria ou participação do réu e não está demonstrada nenhuma excludente ou justificativa”[1].

Ao exigir prova inequívoca de inexistir o fato, de não ser o agente o autor do fato, ou, sendo, de estar amparado em causa excludente de ilicitude ou culpabilidade, a lei não restringe a submissão de alguém ao Tribunal Popular, senão que amplia para todos aqueles contra quem há indícios, ainda que frágeis.

A interpretação conforme a Constituição que se propõe passa necessariamente por compreender o real sentido da previsão constitucional da instituição do Júri, como garantia fundamental. Quis o constituinte que o cidadão culpado pudesse ter seu ato compreendido pelos seus pares e, assim, absolvido. Admitir o contrário, que o cidadão inocente fosse censurado com a condenação penal é absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito que deve zelar até o último minuto com o princípio da presunção de inocência.

A forma de operacionalizar esta difícil filtragem constitucional sobre uma cultura judicial altamente antidemocrática é o juiz, no momento adequado da decisão de pronúncia, examinar o caso como se fosse competente para fazê-lo quanto ao mérito. Não sendo, naturalmente, hipótese de impronúncia e desclassificação, o juiz, acaso fosse competente, fosse absolver o acusado, ainda que com base na dúvida, deve absolver sumariamente o acusado, e impedir que seja submetido aos azares de um julgamento popular. Agora, se, sendo competente, o juiz tivesse elementos para condenar o acusado, aí sim deve pronunciá-lo ao julgamento pelo Tribunal Popular, para que lá seja julgado, respeitada a plenitude de defesa.

Somente assim conseguiremos manter a mais romântica instituição do processo penal, sem correr o risco de transformá-la em uma máquina potencializadora de injustiças, principalmente nestes tempos de elevado punitivismo e sentimento coletivo de impunidade. Há que se observar o procedimento legal, conforme previsto no Código de Processo Penal, sem aviltar garantias individuais previstas na Constituição Federal.

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[1]   LINS E SILVA, Evandro. Sentença de Pronúncia. In: Boletim IBCCRIM. n. 100. Março/2001.

Bruno

Mario

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