A decisão que ratifica (ou não) o recebimento da denúncia exige uma fundamentação sobre as teses defensivas?
É sabido que toda decisão tomada no decorrer de um processo penal deve ser fundamentada, nos termos da Constituição Federal e do Código de Processo Penal. A fundamentação das decisões judiciais é um princípio fundamental e norteador do processo penal, pois permite que as partes (fundamentação interna) e toda a sociedade (externa) tomem conhecimento das razões e justificativas para a tomada daquela decisão, garantindo não só a transparência e publicidade processual, como também a própria legitimidade do procedimento. Ademais, a fundamentação das decisões é essencial para possibilitar a impugnação pelas partes – através dos meios recursais ou meios de impugnação constitucionais –, permitindo, também, que a Corte de revisão avalie a correção e legalidade da decisão.
No processo penal, após o oferecimento da denúncia, recebimento pelo magistrado, citação do acusado e oferecimento da resposta à acusação pela defesa técnica prevista no artigo 396-A do Código de Processo Penal, os autos retornam ao juiz para que reanalise a denúncia sob a luz das alegações trazidas pela defesa, que podem dizer respeito desde a eventuais nulidades ocorridas, causas extintivas da punibilidade, causas excludentes de ilicitude do fato, causas excludentes de culpabilidade do denunciado, até questões relativas à tipicidade do fato denunciado. Caso prevista alguma das hipóteses do artigo 397 do Código de Processo Penal, o juiz pode absolver sumariamente o acusado, sem a necessidade de marcar a instrução processual, ou, ausentes aquelas hipóteses, será mantido o recebimento da denúncia e marcada audiência de instrução e julgamento. A questão que se coloca é a seguinte: a decisão que ratifica (ou não) o recebimento da denúncia após o cumprimento do artigo 396-A do CPP exige uma fundamentação sobre as teses defensivas?
A motivação, nas palavras de Ferrajoli, “exprime e ao mesmo tempo garante a natureza cognitiva em vez da natureza potestativa do juízo”1. Logo, a decisão que ratifica a inicial acusatória ou absolve sumariamente o acusado, assim como todo provimento jurisdicional, não dispensa uma fundamentação suficiente. Se a fundamentação das decisões constitui uma garantia e também a regra geral no processo penal (artigo 93, IX, da CF e artigo 315, § 2º, do CPP), esse importante ato jurisdicional deve ser concretamente motivado – ainda que sucintamente – a partir da contraposição entre as teses apresentadas na defesa preliminar e a hipótese acusatória, sob pena de violação ao contraditório e à ampla defesa, bem como de nulidade do decisum com fulcro no artigo 564, V, do CPP. Essa hipótese de nulidade, conforme Renato Brasileiro de LIMA, “abrange, a nosso juízo, não apenas as hipóteses em que a decisão for proferida sem qualquer motivação, mas também aquelas em que a fundamentação se revelar precária, deficiente, insuficiente”.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus n. 523480-MG3, confirmou a indispensabilidade da fundamentação da decisão que ratificou o recebimento da denúncia, anulando a decisão do juízo de primeiro grau que recebeu a inicial em desfavor do paciente sem, todavia, tecer minimamente referências aos argumentos apresentados pela defesa técnica na resposta à acusação. Na decisão, o Min. Rogério Schietti Cruz, ilustrando com diversos precedentes da 6ª Turma, ressaltou que “a decisão que ratificou o recebimento da denúncia […] olvidou de analisar os argumentos defensivos e não fez a mínima alusão aos argumentos suscitados, ainda que de forma superficial”. Em conclusão, concedeu a ordem para anular o processo a partir da decisão denegatória da absolvição sumária para a prolação de nova decisão, dessa vez com a necessária apreciação dos termos da defesa prévia, em atendimento ao comando constitucional do artigo 93, IX, da Constituição Federal.
Com isso, a Corte Superior garante que a decisão que realiza novo filtro de admissibilidade da ação penal seja orientada, também, pela análise das teses defensivas aventadas pelo acusado na peça de resposta à acusação, encerrando sumariamente um processo criminal manifestamente improcedente ou sem justa causa.