A demonização da vítima em casos de violência contra a mulher
A demonização da vítima em casos de violência contra a mulher
O caso Mari Ferrer tem sido amplamente discutido pela mídia. Embora o processo de estupro contra a digital influencer corra em segredo de justiça, chegando ao ponto de a moça ser bloqueada nas redes sociais por decisão judicial (pois ela utilizava suas redes para dar detalhes do processo), muitos aspectos tem sido abordados pela mídia e confirmados pelas partes.
A jovem foi vítima do crime quando trabalhava em um evento de um beach club de Florianópolis. Quando chegou em casa aparentemente sob o efeito de drogas e com as roupas ensanguentadas, a moça foi levada pela mãe à delegacia. O exame de corpo de delito confirmou o crime. Exames de DNA levaram ao acusado, pois a moça estava sob o efeito de entorpecentes e não se lembrava de muitos detalhes. Restou inconclusivo em que momento a jovem foi dopada e por quem. Imagens de câmeras internas também confirmaram a identidade do acusado.
Como em muitos casos de violência contra a mulher, a moça foi vítima de comentários jogando a culpa do ocorrido nela mesma. Fotos da jovem de biquíni foram usadas pela defesa do acusado para desqualificar a vítima, dando a entender que o crime foi consequência do “comportamento” da moça. O próprio MP manifestou-se pela absolvição do acusado por falta de provas. O advogado de defesa do acusado desqualificou a moça, dizendo que seu comportamento era uma “vergonha”.
Infelizmente, é uma estratégia de defesa corriqueira desqualificar o comportamento da mulher vítima de qualquer forma de violência. Essa estratégia sempre quer insinuar ou mesmo afirmar com todas as letras que se a mulher “mal comportada” sofreu qualquer forma de violência, no fundo foi ela própria que se colocou nessa situação. Numa sociedade profundamente patriarcal como a brasileira, e considerando que o termo “mulher honesta” foi retirado no Código Penal apenas em 2005, essa tese infelizmente sempre encontra MUITOS adeptos.
Um dos casos de maior repercussão envolvendo violência contra a mulher, no qual a tese da “mulher mal comportada” foi usada pela defesa do acusado, foi o caso Ângela Diniz e Doca Street. O playboy teve dois julgamentos pelo assassinato de Ângela, sua ex companheira de um tumultuado relacionamento. O comportamento da jovem foi utilizado pela defesa para justificar a conduta do acusado. Ele matou a moça porque ela o “desonrou” com múltiplas traições. Em um primeiro julgamento, foi condenado a dois anos, com direito a sursis. Em um segundo julgamento em 1981, foi condenado a 15 anos.
A violência contra as mulheres é, talvez, a mais vergonhosa entre todas as violações dos direitos humanos. Enquanto ela prosseguir, não poderemos dizer que progredimos efetivamente em direção a igualdade, ao desenvolvimento e a paz.” (ANNAN, Kófi. UM MUNDO LIVRE DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES, 1999).
Segundo o mestre Damásio de Jesus:
A violência contra as mulheres é um dos fenômenos sociais mais denunciados e que mais ganharam visibilidade nas últimas décadas em todo o mundo. Devido ao seu caráter devastador sobre a saúde e a cidadania das mulheres, políticas públicas passaram a ser buscadas pelos mais diversos setores da sociedade, particularmente pelo movimento feminista. Trata-se de um problema complexo, e seu enfrentamento necessita da composição de serviços de naturezas diversas, demandando grande esforço de trabalho em rede.
(…) Os principais tipos de violência contra as mulheres identificados são: violência sexual, violência doméstica ou familiar, assédio sexual, assédio moral e femicídio. (JESUS, 2015, pg. 7).
Os estudos sobre o tema são recentes. O próprio termo “femicídio” ou “feminicídio” ainda causa controvérsias. O termo foi citado pela 1ª vez por Radford e Russell, autoras do livro Femicide: the politics of woman killing (em tradução livre: Femicídio: as políticas de matança de mulheres).
O próprio conceito de “crime passional” por anos desviou o foco da discussão do problema grave da violência contra a mulher, confundindo violência com paixão.
Nesse momento em que estamos vivendo a 3ª onda do movimento feminista, o tema violência contra a mulher é uma das bandeiras mais importantes. Cada vez mais as mulheres se encaminham às delegacias a fim de denunciar um crime doloroso e hediondo. Cabe agora, ao sistema de Justiça, que deve incluir as delegacias, MP e Judiciário, devolver a confiança de tantas vítimas nesse mesmo sistema, tratando casos de violência contra a mulher com a seriedade e o respeito que a matéria demanda.
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REFERÊNCIAS
JESUS, Damásio. Violência contra a mulher. Aspectos criminais da Lei 11.343/2006. 2ª edição. São Paulo. Saraiva, 2015.
Notícia Folha de São Paulo: Doca Street afirma que mereceu ser condenado. Link aqui.
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