A detração penal e as medidas cautelares alternativas
Com o advento da Lei n° 12.403/2011, a qual produziu alteração no Código de Processo Penal, inserindo a previsão de medidas cautelares diversas da prisão (arts. 317, 318, incisos I a VI, 318-A e 319, incisos I a IX, do CPP), surgiu situação não vislumbrada pelo legislador.
É que, de acordo com o instituto da detração penal, computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior (art. 42 do Código Penal).
Como se percebe, a previsão normativa é de que será detraído da pena privativa de liberdade imposta em decisão penal condenatória o tempo de prisão provisória, inexistindo qualquer disciplina legal quanto à detração do tempo que o investigado ou acusado for submetido a alguma medida cautelar alternativa à prisão.
Veja-se que, segundo estabelece o § 6° do art. 282 do CPP, as medidas cautelares alternativas são preferíveis à prisão preventiva, acentuando o caráter subsidiário da medida extrema, o que mais evidencia o problema surgido com a apontada lacuna legislativa.
Com efeito, algumas das medidas cautelares diversas da prisão, especialmente, a prisão domiciliar, o recolhimento domiciliar noturno e em dias de folga e o monitoramento eletrônico, principalmente quando este impõe limite de circulação física ao acusado, implicam sério gravame ao direito de ir, vir e ficar, consectário do status libertatis de qualquer cidadão, a quem se assegura o direito fundamental à livre circulação no território nacional (art. 5°, inciso XV, da Constituição Federal), de maneira que qualquer medida que importe restrição a esse direito deverá ser visualizada como exceção a uma regra.
A despeito da inexistência de regramento legal expresso, força é reconhecer que toda medida cautelar que imponha ao cidadão limitação ao direito à livre circulação, quando aplicada em substituição à prisão preventiva, implica sério gravame ao status libertatis do cidadão, pelo que, em respeito ao princípio da proporcionalidade e à vedação ao bis in idem, é de ser detraído da pena o período de tempo de permanência do acusado sob cautelar processual penal que signifique restrição à liberdade de circulação.
No plano doutrinário, o Professor Pierpaolo Cruz BOTTINI (2012, p. 5) anota:
Se a detração da prisão tem por fundamento o princípio da equidade e a vedação ao bis in idem, deve o instituto ser estendido a qualquer hipótese de intervenção do Estado em direitos do cidadão, seja a liberdade de locomoção, seja outro qualquer.
Veja-se, nesse sentido, recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
Consolidou-se na Quinta Turma deste Tribunal entendimento no sentido de que, a despeito da inexistência de previsão legal para a detração penal na hipótese de submissão do sentenciado a medidas cautelares diversas da prisão, o período de recolhimento domiciliar noturno, por ensejar a privação de liberdade do apenado, deve ser detraído da pena, em observância aos princípios da proporcionalidade e do non bis in idem (STJ, 5ª Turma, AgRg no HC 612.638/DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09.03.2021).
Nesse mencionado julgado, o Relator, Ministro Ribeiro Dantas ponderou:
[…], refletindo mais sobre o tema, considero a detração inteiramente aplicável ao caso da medida cautelar de recolhimento noturno, por ensejar a privação de liberdade do apenado.
Mais:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. MEDIDAS CAUTELARES ALTERNATIVAS. RECOLHIMENTO DOMICILIAR NOTURNO. DETRAÇÃO PENAL. 1. A despeito da inexistência de previsão legal para a detração penal na hipótese de submissão do sentenciado a medidas cautelares diversas da prisão, o período de recolhimento domiciliar noturno, por comprometer o status libertatis, deve ser detraído da pena em observância aos princípios da proporcionalidade e do non bis in idem. 2. Agravo regimental provido. (STJ, 5ª Turma, AgRg no HC 565.899/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 27.10.2020) (grifou-se)
Ainda que as mencionadas decisões sejam relativas à medida cautelar de recolhimento noturno, tem-se como plenamente aplicáveis a casos em que, por força de aplicação substitutiva de outras medidas cautelares alternativas, esteja o acusado sofrendo gravame ao direito à liberdade. Como dito, a despeito de o art. 42 do Código Penal não contemplar a possibilidade de detração do tempo de sujeição a medidas cautelares alternativas, das quais surja restrição ao direito de livre circulação, como passível de detração, é de ser aplicada analogicamente a regra prevista no art. 44, § 4°, parte final, do Código Penal:
Art. 44. (…)
(…)
§ 4oA pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta. No cálculo da pena privativa de liberdade a executar será deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão. (grifou-se)
Oportuno enfatizar que, tanto o art. 42 do Código Penal, disciplinando a detração penal, quanto o art. 44, § 4°, do Código Penal, que trata da detração do tempo de cumprimento de penas restritivas de direitos, tiveram suas respectivas redações estabelecidas anteriormente à vigência da Lei n° 12.403/2011, diploma legal que introduziu no Código de Processo Penal a figura das medidas cautelares diversas da prisão.
Portanto, é da lógica do sistema normativo que se extrai fundamento para que o tempo de sujeição do acusado à medida cautelar que signifique imposição de restrição ao pleno direito de liberdade seja detraído do tempo de pena privativa de liberdade que tenha sido imposta ao cidadão.
Soaria retumbante injustiça uma pessoa permanecer meses a fio (não raro, anos) submetida a uma cautelar alternativa que lhe imponha restrição à liberdade e, uma vez condenada, esse tempo não ser detraído da pena privativa de liberdade a cumprir.
É uma questão de justiça. E de lógica.
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