A esquerda punitivista e a hipocrisia de todos nós

A esquerda punitivista e a hipocrisia de todos nós

Um espectro ronda a Europa, o Brasil, e todo o mundo – o espectro do punitivismo. Todas as grandes potencias unem-se numa Estranha Aliança a fim de invocá-lo.

Houve tempo, segundo dizem, que as bandeiras punitivistas eram erguidas tão somente por grupos conhecidos por seu alinhamento à direita política, o que se compatibiliza com o discurso de defesa da ordem e da segurança (SILVA SÁNCHEZ, p. 69).

Por outro lado, a esquerda política está associada, tradicionalmente, à ideia de enfrentamento à pressão punitiva (SILVA SÁNCHEZ, p. 69).

O cenário mudou. O entusiasmo (ou clima) punitivo cada vez menos pode ser vinculado exclusivamente a um determinado segmento ideológico. As pautas são diversas, mas o objetivo é o mesmo: preservar os próprios interesses.

Ilustrando o que seriam “interesses próprios”, Sáez Valcárcel, citado por Silva Sánchez (2001, p. 71), apontou o fato de que, pela esquerda política, quando das discussões que ensejaram a elaboração do Código Penal Espanhol de 1995, terem sido levantadas propostas de criminalização de valores coletivos ligados aos direitos dos trabalhadores e das mulheres; de proteção do meio ambiente; de defesa dos interesses das minorias; contra a discriminação e o racismo.

Porém, segundo advertido pelo renomado mestre, nenhuma dessas propostas levou em conta a inflação do Direito Penal, o que também tem reflexos socialmente relevantes.

A questão que aqui se põe não busca discutir se as pautas anteriormente citadas merecem ou não a proteção do Estado. É indiscutível que merecem e é lamentável que, no século XXI, ainda precisemos reafirmar isso quase diariamente.

Discutíveis, contudo, são as propostas abusivas que buscam transformar o Direito Penal na imediata solução de todos os dramas que afligem o Estado, o que leva esse ramo do Direito a um cenário de indevida expansão.

O grande problema de serem impostas cargas excessivamente pesadas ao Direito Penal, muitas das quais ele não é capaz de suportar, está no risco de comprometer a sua eficácia.

Naturalmente, um Direito Penal ineficaz tende a ser descreditado pela “opinião pública” (seja lá qual for o significado desta expressão), que exigirá mais endurecimento (e expansão) da legislação e do tratamento penal. Eis o ciclo vicioso, observado, inclusive, no Brasil.

Aliás, por falar em Brasil, por aqui, em matéria penal, exemplos recentes do punitivismo de esquerda não faltam. Tomemos como exemplo a decisão do STF que considerou a prática de atos transfóbicos e homofóbicos formas contemporâneas de racismo, num verdadeiro “salto triplo carpado hermenêutico”- expressão desenhada pelo ex-Ministro Ayres Britto.

A decisão foi aclamada pelos setores mais progressistas da sociedade.

Respeitosa parcela dos juristas, por ser ideologicamente vinculada às ideias de esquerda, manteve-se (deliberadamente) silenciosa em relação à mencionada decisão.

Mesmo aqueles que se colocam como ferrenhos críticos das indevidas ingerências do Poder Judiciário nos demais Poderes pouco ou nada comentaram, talvez por receio de se indisporem com a ala progressista de suas ideias.

Cuida-se de um fenômeno perfeitamente observável em um contexto politicamente dividido como o nosso, o do “garantismo de ocasião”. A ideia não é muito complexa e não abrange apenas a esquerda política: “para a minha defesa e para defesa dos meus, garantias até a morte! Para os meus inimigos e adversários, a morte”.

É neste compasso de guerra entre opostos que o Direito Penal brasileiro vai (tristemente) caminhando. Enquanto isso, as garantias penais e processuais ficam à mercê das paixões dos julgadores… e também dos torcedores. Tudo sob aplausos da imprensa.

A Constituição não faz nenhuma ressalva sobre ser a presunção de inocência (ou de não culpabilidade, como preferem alguns) aplicável somente a este ou àquele “lado” político. Convenhamos, porém, que o que a Constituição diz ou deixa de dizer já há muito não vem sendo ouvido mesmo…

Exemplo interessante está na temática dos crimes imprescritíveis. A maior parte de nossos autores entende que as hipóteses de imprescritibilidade presentes no art. 5º, incisos XLII e XLIV, do Texto Magno são taxativas.

Logo, não pode o legislador infraconstitucional (e muito menos o Poder Judiciário) criar hipóteses para além daquelas previstas na CF/88. Até porque, diferentemente do que ocorreu em relação aos crimes hediondos, não houve expressa delegação para que o legislador ordinário estabelecesse (ou ampliasse) as hipóteses de imprescritibilidade (LOPES JR, 2019, p. 553).

Ainda assim, não faltam propostas de ampliação desse rol. Conforme noticiado no final de 2019, o Senado aprovou a PEC 75/19, que pretende tornar imprescritíveis e inafiançáveis o feminicídio e o estupro. A PEC seguiu para análise na Câmara.

A aprovação foi aclamada pela área progressista da sociedade. Contou, inclusive, com o apoio de juristas de respeito, como o da advogada e escritora Luiza Nagib, que, ignorando a taxatividade constitucional, defendeu que a CF/88 “precisa ser aperfeiçoada para que a proteção aos direitos da mulher se torne, finalmente, uma realidade”.

Nisso estamos de acordo.

A crítica aqui esboçada está na tentativa de expansão seletiva e (hipócrita) do Direito Penal.  Não se trata de “negar direitos” e proteção ao grupo dos mais vulneráveis.

O problema está em interferir, em severa afronta ao que diz o art. 60, §4º, IV, da CF/88, numa garantia constitucional (no caso, a prescritibilidade).

 Não dá para fingir que os fins penais justificam os meios, por mais nobre que a causa seja. É o sistema judicial burocrático e ineficiente, e não a prescrição, o maior responsável pela demora na prestação jurisdicional.

Porém, as multidões, sedentas por punições que as favoreçam, têm dificuldade para enxergar. Enquanto isso, pessoas vão sendo precocemente expostas e reputações vão sendo destruídas.

Para que serve o devido processo, afinal? Suponho que, num espaço cheio de acusadores e juízes como a internet, sirva para muito pouco.

E vamos punindo mais, remando conforme a ideologia do acusado e da causa que o envolve. Hoje, garantias para os amigos; amanhã, punição para os inimigos.

Na dança da hipocrisia, o processo penal democrático já dançou faz tempo.

REFERÊNCIAS

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

SILVA SÁNCHEZ, Jesus-María. La expansión del derecho penal. 2. ed. Civitas Ediciones, S. L. 2001.

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