A face oculta da legislação contra o terror
Por Douglas Rodrigues da Silva
No Brasil, desde março de 2016, temos a Lei nº 13.260, cuja pretensão seria a de disciplinar o tema do “terrorismo”, conforme descrito pela Constituição, em seu artigo 5º. Embora, ao contrário da política internacional, essa lei não tenha vindo no intuito de reprimir ataques de grupos comumente definidos como adeptos ao “terror do islã”, mas, sim, com a pretensão de coibir movimentos sociais e grandes manifestações, como aquelas ocorridas no ano de 2013, movidas pelo aumento das passagens do transporte público municipal, e aquelas ocorridas no ano de 2014, contra a Copa do Mundo de Futebol que aqui ocorria.
Todavia, passado o contexto social e político sob o qual foi escrita, a legislação entrou em vigor neste ano e, recentemente, teve sua “estreia” no mundo jurídico por meio da “Operação Hashtag”, conduzida pela Polícia Federal.
Após a ocorrência de crimes massivos na França e Estados Unidos, o Governo Brasileiro resolveu partir para a “guerra ao terror” – ainda mais porque receberemos os Jogos Olímpicos em alguns dias e qualquer conduta que parecesse omissiva no combate a tais atos poderia enfraquecer a imagem do governo atual. Um ato de “terror” durante os jogos seria suficiente para demonstrar as incapacidades do país em organizar grandes eventos.
Pois bem.
Como primeira medida, foram detidos pela Polícia Federal diversas pessoas acusadas de “atos preparatórios de terrorismo”, conforme a redação do artigo 5º da Lei nº 13.260/2016.
Os mencionados “atos preparatórios” seriam, conforme informações repassadas pela imprensa: a) o fato de que alguns dos sujeitos juraram lealdade ao Estado Islâmico; b) a comunicação entre pessoas que não se conheciam pessoalmente, cujo tema seria relativo a planos de ataques aos Jogos Olímpicos do Rio; e c) porque um dos sujeitos presos teria pesquisado maneiras de adquirir um fuzil no Paraguai, mas nunca o fez efetivamente.
A justificativa do Ministro da Justiça, em entrevista foi a seguinte:
“Mas obviamente que não podemos – nenhuma força de segurança – ignorar isso. […] Só o fato de começarem atos preparatórios, não seria de bom senso aguardar para ver, e o melhor era decretar a prisão deles”.
Todos esses fatos, por mais aterradores que possam parecer (embora acreditemos no total amadorismo e bestialidade dos sujeitos presos), apenas deixam evidentes as falhas da norma penal, bem como sua completa teratologia quando posta diante dos princípios básicos do direito e da teoria do delito. Em verdade, a legislação “antiterror” brasileira é que deveria ser definida como um ato de “terrorismo” – e talvez o pior deles, já que promovido pelo próprio Estado – e explicamos os motivos para tanto.
Antes de mais nada, cabe frisar que ninguém sabe ao certo o que efetivamente seja “terrorismo”, tampouco a lei brasileira, já que ela o define como provocação de “terror social”. O termo é tão nebuloso quanto o orçamento dos Jogos Olímpicos.
Como já ressaltou ZAFFARONI (2007, p. 16-17) os atos hoje definidos como terrorismo nada mais são do que efetivamente crimes comuns cometidos de forma massiva e maciça, atingindo um número alto de pessoas ou instituições, muitas vezes em resposta a outras violências sofridas pelo grupo que realizou o ataque. Aliás, seguindo por essa lógica, nem sentido haveria em se criminalizar assassinatos, lesões corporais ou incitação ao ódio como crimes de terrorismo – veja-se que, para isso, o direito penal já apresenta crimes como homicídio, lesões corporais, bem como crimes de racismo e intolerância. Com efeito, a ascensão de termos como “terrorismo” e “guerra ao terror” presta-se, antes de tudo, a fundamentar arbitrariedades, exceções ao estado democrático e violação de garantias fundamentais, sob a falácia de combate a grupos nocivos à segurança nacional.
Trata-se de um mecanismo de seleção e exclusão de grupos sociais. A proteção dos bens jurídicos já se faz presente quando se criminalizam as condutas de matar alguém ou de atentar contra a integridade física de outrem.
Em suma, a partir do discurso de combate ao “terror”, afastam-se garantias fundamentais e passam-se a considerar determinadas pessoas como não cidadãos, merecedoras de um direito penal diferenciado, consubstanciado em tratamentos diversos, vez que os acusados são “inimigos” (JAKOBS; MELIÁ, 2007, p. 11). Com efeito, o direito estaria autorizado a lançar mão de expedientes autoritários, pois as garantias asseguradas ao cidadão não poderiam se estender a esses acusados – ou não cidadãos. Há a negação da condição jurídica de pessoa.
E justamente tais violações podem ser visualizadas de maneira clara na própria redação do artigo 5º da Lei nº 13.260/2016.
Como se sabe, os delitos de resultado perpassam por um caminho chamado iter criminis, o qual é composto por diversas etapas, sendo elas: i) cogitação (cogitatio); ii) atos preparatórios, consistentes em traçar um plano e adquirir o material necessário; iii) atos executórios, caracterizados pela prática efetiva de atos necessários a consumação; iv) consumação, momento em que o crime alcança o resultado pretendido; e v) exaurimento, consistente nos efeitos da consumação.
O direito penal não pune a cogitação e, muito menos, os atos preparatórios. A uma porque não se tem nenhuma forma eficaz e segura de se alcançar o pensamento do agente, como também, o livre pensar não afeta bens jurídicos. A duas porque, não obstante já se tenha a prática de atos preparatórios, nada impede que o sujeito nunca leve adiante seu plano ou desista dele – qualquer tentativa de criminalização, salvo uma exceção apenas, legitimaria num crime sem dano e sem resultado, sequer em sua forma jurídica.
A única exceção à punição de atos preparatórios seria que estes estivessem previstos como crimes autônomos, como, por exemplo, é o caso de quem adquire um fuzil. Mas, nesse caso, o crime não poderia ser o de “ato preparatório”, por si, e, sim, aquele previsto no artigo 16 da Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).
A lei “antiterror” somente poderia punir atos preparatórios se os previsse expressamente em seu texto, deixando claro o que é propriamente um “ato preparatório de terrorismo” – e isso ela não fez. Logo, padece de grave inconstitucionalidade.
Disso, é de se ver a verdadeira teratologia do texto legal, pois ao não definir, objetivamente, o que são os atos preparatórios, fomenta o poder arbitrário do Estado, autorizando-o a definir, ele mesmo, o que entende por “ato preparatório de terrorismo”. Permite-se, em outros termos, que o terror parta do próprio poder punitivo do Estado contra quem ele realmente queira – podendo dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.
Além de atacar frontalmente o princípio da reserva legal que, como exposto por Nilo BATISTA (2011, p. 79), tem como uma de suas premissas a clareza na definição de condutas, sendo defeso o emprego de elementos sem precisão semântica; a norma mitiga a proibição de excesso, decorrente do postulado da proporcionalidade (ROXIN, 2013, p. 27), que deve guiar a atuação persecutória dos órgãos estatais.
Impende alertar por conseguinte, que hoje o poder punitivo preocupa-se com “células terroristas”, como ontem preocupou-se com “células comunistas subversivas”. A norma, como posta, apenas deixa aberto o espaço para interpretações maleáveis, antidemocráticas e fomentadoras do “terror” jurídico do próprio Estado.
Nada poderá impedir, por exemplo, que “ato preparatório de terrorismo” seja o “porte de vinagre” por manifestantes – o que, cabe lembrar, já foi uma medida tomada pela Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, quando autorizou a Polícia Militar a prender estudantes e jornalistas que portavam o “material perigoso” como forma de proteção dos efeitos das bombas de gás lacrimogêneo atiradas contra a multidão.
Com isso, não se está a dizer aqui que os atos praticados em Nice, Munique, Paris, Cabul, Istambul ou Bagdá sejam louváveis, por óbvio que não. No entanto, não se tem como utilizar o direito penal para uma missão que a ele não cabe. O direito penal já atua sobre tais atos quando criminaliza o assassinato, o porte ilegal de armas, o sequestro, a lesão corporal etc. Ao definirem-se os mesmos crimes com novas roupagens apenas se quer chancelar atos persecutórios ilegítimos, movidos por interesses alheios à proteção da vida humana.
Repita-se: hoje são as “células do Estado Islâmico”, ontem foram “células comunistas subversivas”, amanhã serão “células de alguma coisa que atente aos interesses do poder punitivo vigente” – nas quais você poderá estar incluído.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. Introdução ao estudo do direito penal brasileiro. 12. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução de André Luís Callegari e Nereu Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.