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A falácia da paridade de armas na execução penal

A falácia da paridade de armas na execução penal

A garantia dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, presunção de inocência, devido processo legal e garantias fundamentais, torna-se utópica em demasiados casos concretos. Portanto, cada dia é mais necessário lutar para efetivar na prática cotidiana os referidos direitos dos indivíduos privados de liberdade.

Nesse sentido, no tocante à natureza jurídica da execução penal, ressalta Rodrigo Roig (2018, p. 55):

Nos dias atuais, a doutrina se divide basicamente em duas correntes. Afirma-se, por um lado, que a execução penal possui natureza mista, uma vez que embora os incidentes do processo se desenvolvam em âmbito judicial, diversos aspectos da execução dependem de atuação administrativa, sobretudo da direção, chefia de disciplina e secretaria dos estabelecimentos penais.

Observa-se em decorrência da natureza jurídica da execução demasiados problemas no cotidiano forense que ensejam discussões, como, por exemplo, a homologação de faltas graves nos processos de execução penal, bem como discussões e divergências nos tribunais superiores. 

Como exemplo, a homologação de uma falta grave em uma ação penal em curso é suficiente para regredir os indivíduos cautelarmente? Não deveria prevalecer a presunção de inocência, observado o que preceitua a Carta Magna e os direitos e garantias individuais dos acusados? 

São perguntas inerentes a quem atua no âmbito da execução penal e ensejam demasiadas discussões. Na prática, observamos a divergência de entendimento. Se por um lado, alguns magistrados homologam as faltas graves cometidas (como exemplo fuga), mas mantém o regime anteriormente estabelecido; por outro, magistrados homologam as faltas graves cometidas e ainda regridem cautelarmente os indivíduos de regime, o que seria incongruente com base no princípio da presunção de inocência.

Ressalta Brito (2019,  p. 37) nesse entendimento:

A consequência natural do distanciamento do Judiciário da execução é a completa discricionariedade do administrador prisional, o que levou ao subterrâneo o reconhecimento da dignidade da pessoa presa, tratada por vezes como um non cives.

Ainda, em diversas situações, indivíduos acabam sendo regredidos cautelarmente de regime após a homologação da falta grave, mesmo antes da audiência de justificativa, em clara afronta aos princípios do contraditório e ampla defesa. 

Nesse sentido, importante decisão do Superior Tribunal de Justiça: 

RECURSO DE AGRAVO. EXECUÇÃO PENAL. REGRESSÃO DO REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA DO REEDUCANDO DO SEMIABERTO HARMONIZADO PARA O FECHADO. SUPOSTO COMETIMENTO DE CRIMES DOLOSOS. FALTA GRAVE. AUSÊNCIA DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR (PAD). IRRELEVÂNCIA. FALTA OCORRIDA FORA DO ESTABELECIMENTO PRISIONAL. AUDIÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA ASSEGURADOS. MEDIDA PROPORCIONAL E ADEQUADA. NOVAS INFRAÇÕES DOLOSAS. DESNECESSIDADE DE TRÂNSITO EM JULGADO. ARTIGO 118, INCISO I DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (…) Já, ao contrário, quando ocorrida a falta grave fora dos referidos estabelecimentos prisionais, ela poderá ser apurada pelo próprio juízo da execução, mediante audiência de justificação. Nesses casos, entende-se que não haveria contrariedade à Súmula n. 533 do STJ, desde que observado o contraditório e a ampla defesa, nos termos da instrução Normativa Conjunta n° 02/2013 (TJ/PR, CGJ/PR, MP/PR, SEJU/PR e SES/PR), bem como o art. 59 da Lei de Execuções Penais, por ausência qualquer prejuízo ao apenado. (HABEAS CORPUS Nº 527.579 – PR (2019/0242673-0) RELATOR : MINISTRO NEFI CORDEIRO, Data da publicação: 25/09/2019), (grifos nossos). 

Ainda, há situações mais graves na qual os indivíduos são regredidos cautelarmente dos regimes anteriormente estabelecidos, sem a devida homologação judicial da falta disciplinar do âmbito da execução penal. Nesse sentido, entendimento jurisprudencial sobre a importância da homologação do procedimento administrativo para reconhecimento de faltas graves no curso do processo de execução:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. FALTAS DISCIPLINARES DE NATUREZA GRAVE. COMETIMENTO DE NOVO DELITO NO CURSO DA EXECUÇÃO DA PENA E FUGA DO ESTABELECIMENTO PRISIONAL. INFRAÇÕES NÃO HOMOLOGADAS EM DATA ANTERIOR À PUBLICAÇÃO DO DECRETO PRESIDENCIAL. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. A configuração da falta de natureza grave enseja vários efeitos, entre eles: a possibilidade de colocação do sentenciado em regime disciplinar diferenciado; a interrupção do lapso para a aquisição de outros instrumentos ressocializantes, como, por exemplo, a progressão para regime menos gravoso; a regressão no caso do cumprimento da pena em regime diverso do fechado, além da revogação em até 1/3 do tempo remido. 2. Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal – no caso, cometimento de novo delito no curso da execução da pena e fuga do estabelecimento prisional -, é imprescindível o reconhecimento da infração pelo juízo competente, mediante homologação de procedimento administrativo disciplinar, no prazo previsto nos arts. 4° do Decreto n. 7.873/2012 e 5º do Decreto n. 8.172/2013, o que não ocorreu em data anterior à publicação dos decretos presidenciais. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1533041/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 02/12/2015), (grifos nossos).

Nesse sentido, ressalta-se a importância de tutelar pelos direitos individuais dos acusados, para que a aplicação da pena no curso de execução penal ocorra amparada pelos princípios basilares de um Estado Democrático de Direito, bem como aos demais princípios da execução como aduz Brito (2017, p. 4):

Princípio da legalidade, humanidade, isonomia, jurisdicionalidade, individualização da pena, intranscendência ou personalidade, devido processo legal, estado de inocência e contraditório e ampla defesa.

No tocante à presunção de inocência, ressalta BRITO (2019, 74):  

’Durante a execução da pena o condenado poderá ser acusado de atos penais ou administrativos, que implicarão consequências diretas em seu regime de cumprimento ou direitos como saídas  temporárias, remição etc. É certo que, mesmo após sua condenação por um crime anterior, sua conduta posterior deve ser analisada caso a caso, e o estado de inocência deve acompanhá-lo, para que antes da revogação ou destituição de algum direito, possa provar sua inocência. A garantia decorre, primeiramente, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, e que em seu art. 8º, item 2, dispõe que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas (…) (grifos nossos).

Ainda, há situações ainda mais delicadas, primordialmente no tocante aos indivíduos hipossuficientes, em demasiadas situações relegados a própria sorte dentro do sistema prisional, como casos de indeferimento de substituição da prisão por prisão domiciliar em casos de doenças graves, mesmo com entendimento pacificado nas Cortes Superiores sobre tal possibilidade e direito, conforme se observa no presente julgado:

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PACIENTE PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTABELECIMENTO PRISIONAL. CONDIÇÕES INADEQUADAS PARA TRATAMENTO. PRISÃO DOMICILIAR. POSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. Esta Corte Superior, interpretando o art. 117 da Lei 7.210/1984, tem entendido pela possibilidade excepcional do deferimento da prisão domiciliar aos apenados que se encontrem em regimes semiaberto e fechado, quando as circunstâncias do caso recomendarem essa medida. 2. Paciente acometido de doença grave, restando certo que o estabelecimento prisional onde se encontra não dispõe dos meios necessários à prestação do adequado tratamento de saúde. 3. Habeas corpus concedido para a transferência do paciente para a transferência do paciente para prisão domiciliar, mediante monitoramento eletrônico, o que não impede o cumprimento da ordem acaso indisponível esse instrumento, isso enquanto mantiver a condição de doença que o impossibilite de ser tratado na unidade prisional ou até ser instalado serviço médico apto a seu tratamento. (HC 521663 / RO HABEAS CORPUS 2019/0205702-6, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Órgão julgador: T6 – SEXTA TURMA, Data do julgamento: 10/09/2019, Data da publicação/ Fonte: DJe 16/09/2019), (grifos nossos). 

No tocante às funções da pena, ressalta Brito (2019, p. 67):

’Enquanto a humanidade não encontrar solução para a pena privativa de liberdade, deverá executá-la da melhor forma possível referencialmente ao homem condenado. Concorde-se ou não com a reinserção social e, talvez, moral do apenado, não se pode perder de vista a observância plena de seus direitos e da justa cobrança dos seus deveres sem os excessos habituais (OLIVEIRA. Direitos e deveres do condenado, p. 17).  As penas não podem consistir em tratamentos contrários ao senso de humanidade e devem tender à reeducação do condenado’’.

Ressalta ainda BATISTA (2007, p. 100):

a racionalidade da pena implica tenha ela um sentido compatível com o humano e suas cambiantes aspirações. A pena não pode, pois, exaurir-se num rito de expiação e opróbio, não pode ser uma coerção puramente negativa.

Portanto, é evidente a ausência de paridade de armas nos processos criminais e no âmbito da execução penal, sendo fundamental no cotidiano forense a luta pela efetivação dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos privados de liberdade, em consonância com o Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

BRITO, Alexis Couto de, Execução penal, 5. ed. São Paulo, Saraiva Educação, 2019.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Execução penal: teoria crítica. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.


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Paula Yurie Abiko

Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal - ABDCONST. Pós-Graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em Direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE).

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