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A falácia da política de guerra às drogas


Por Douglas Rodrigues da Silva


É estranho pensar que, em pleno século XXI, a humanidade ainda não tenha se dado conta de um fator primordial que se configura como uma de suas características: a busca de conforto em substâncias alucinógenas e narcotizantes.

É de se frisar, desde já, que aqui não se pretende defender os notórios malefícios causados pelas drogas, tampouco reafirmar o que já se sabe, elas matam e muito. Também não discordamos dos efeitos familiares decorrentes do seu uso – como a angustia familiar, a desestruturação das relações e relacionamentos, a depressão etc. Porém, não podemos perder de vista o debate que realmente nos interessa como atores do direito penal: a criminalização, ao menos do usuário, não pode mais ser vista como uma solução.

ZAFFARONI (2013, p. 115) uma vez afirmou, e com ele fazemos coro, que, se colocarmos os números na ponta lápis, provavelmente veremos que a guerra às drogas, em poucos anos, foi responsável por um número de mortes infinitamente superior àquele que, em cem anos, teríamos de pessoas mortas por overdose. E, com tal afirmação, podemos ver a ilogicidade da política que adotamos hoje.

O debate hoje travado no entorno da questão das drogas está realmente longe de querer solucionar ou, ao menos, minimizar os efeitos da drogadição. Parece, ao se analisar tudo que temos aí, muito mais uma questão moral e de estigmatização social, do que, propriamente, uma tentativa de se melhorar um problema que se arrasta por décadas.

E, no intuito de contribuir na construção de novas premissas ao debate, exporemos nossas conclusões sob três pontos bases, sendo eles: 1) a questão do bem jurídicos; 2) o direito de disposição da própria vida; e 3) a criminalização dos usuários como meio de controle social – as duas primeiras de cunho dogmático e a terceira de cunho criminológico.

A primeira questão toca diretamente à questão do bem jurídico tutelado pelo tipo penal posto no artigo 28 da Lei nº 11.343/2005. A redação do mencionado artigo diz que comete crime: “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Para boa parte da doutrina nacional, inclusive para jurisprudência, a norma do artigo 28 visa proteger o bem jurídico “saúde pública”. Todavia, desse entendimento discordamos integralmente e explicamos.

Claus ROXIN (2013, p. 16-17) já asseverou que ao direito penal incumbe a precípua função de garantir a coexistência pacífica, livre e segura da sociedade, desde que tais metas não possam ser atingidas por outras medidas político-sociais, que afetem em menor medida o direito à liberdade que dispõe todo cidadão. A intervenção penal deve sempre buscar o equilíbrio entre punição (ligada ao âmbito penal) e liberdade (sob o prisma civil). Com efeito, o conceito de bem jurídico deve partir dessas premissas.

Para o penalista alemão, o Estado deve assegurar a proteção de condições individuais necessárias (como vida, patrimônio, dignidade sexual etc.), bem como deve fornecer, por meio do direito penal, instituições estatais adequadas, pois sem elas não existe garantia de coexistência pacífica (ROXIN, 2013, p. 19).

Todo o direito se refere a algo e o bem jurídico é esse algo ao qual se refere determinado direito (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 399).

Portanto, somente se pode falar em bem jurídico quando estamos diante de algo necessário à coexistência pacífica da sociedade, cuja proteção não pode ser dada por meio de outro mecanismo político-social.

Agora, pergunta-se, qual o impacto do uso de drogas à coexistência pacífica da sociedade?

Sob o viés da violação de bens jurídicos, nenhum.

O usuário de drogas simplesmente não viola preceitos de coexistência, pois as substâncias que são consumidas pelo sujeito apenas afetam a sua própria existência, não irradiando efeitos para esferas de outros indivíduos. Aliás, é verdadeira falácia afirmar que o consumo pessoal de drogas afeta a saúde pública, pode ser que afete a do próprio consumidor (como de fato afeta), mas gera ônus tão grandes ao sistema de saúde quanto surtos de gripe no inverno.

Não se tem como, no âmbito penal, afirmar a presença de um bem jurídico digno de tutela penal.

No segundo ponto desta pequena explanação, temos o direito do ser humano dispor, como bem entender de sua vida.

Veja-se que o direito à vida é basilar num Estado Democrático, porém não é absoluto. É de se notar, por exemplo, que a própria lei nos permite dispor da vida de outrem, como no caso da legítima defesa e do aborto em casos de estupro ou estado de necessidade. Não bastasse isso, o próprio texto da Constituição autoriza a pena de morte em casos de guerra. Logo, o direito à vida não é de todo absoluto.

Então, se o próprio ordenamento jurídico, em determinadas hipóteses, autoriza a disposição da vida de terceiros, por que não permitiria de nossa própria vida?

Todos nós temos o direito de “se matar”. Pode parecer algo ilógico, mas não é. O que a lei veda, como regra, é somente que uma pessoa retire injustificadamente a vida de um terceiro ou a ele preste auxílio ou instigue o suicídio. Em nenhum momento nos é vedado o suicídio – seja em razão da impossibilidade de antecipar-se ao intento suicida, seja em virtude de nossa liberdade de escolher o que é bom ou ruim a nossa própria integridade.

Por que, então, o Estado poderia impedir-me de usar qualquer substância entorpecente?

Impende mencionar que uso de outras substâncias de caráter nocivo, não raras vezes em grau maior às “drogas comuns”, como álcool e tabaco, não levam à criminalização de seus usuários. Além disso, cabe destacar que substâncias lícitas, como o “gás de buzina”, também podem assumir a função de substâncias entorpecentes e nem por isso serão proibidas.

Logo, a resposta a última questão levantada relaciona-se, diretamente, ao terceiro ponto da nossa abordagem: a criminalização das drogas e de seus usuários, nada mais é, do que um mecanismo de controle social.

A política de “guerra às drogas” nada mais é do que uma [pseudo] emergência levantada pelos Estados, principalmente Latino-Americanos, para o fim de possibilitar uma atuação beligerante por parte de seus órgãos. Sem a justificativa de combate às drogas, o Estado perde seu fundamento demagógico de neutralização de comunidades periféricas e de criminalização daqueles que não se adéquam aos padrões impostos.

Objetiva-se conter os consumidores que falharam em sua missão (máximo consumo movido pelas lacunas de identidade) e propiciar a segurança necessária àqueles que continuam firmes no propósito construído pela sociedade de consumo (BAUMAN, 2008. p. 71-72).

E, dentro desses estereótipos criminais, as agências criminalizadoras, sejam primárias ou secundárias, moldam suas condutas no sentido de promover a persecução penal de determinados grupos em detrimento de outros. Da mesma forma, tais estereótipos são um “prato cheio” aos expoentes da criminologia midiática – como expomos em texto passado – para movimentar o processo penal perigosista.

Desta feita, com base das três premissas aventadas, não concordamos com a criminalização das drogas e tampouco com a de seus usuários. Estamos a décadas insistindo numa política de combate beligerante e demagógica, sem justificativa jurídico-penal, que apenas fez com que tivéssemos mais mortos ao invés da tal sonhada segurança.

Ninguém é obrigado a manter compromisso com o erro, o que inclui o sistema penal.

Devemos repensar, e logo, nossa política de controle de entorpecentes e falar em legalização do uso destes é, a nosso ver, o primeiro e mais importante passo. Pode ser que a liberação não seja aquilo que sonhamos, mas do jeito em que as coisas caminham, não podemos mais, como juristas, fechar os olhos ao mar de sangue que escorre por entre nossos dedos. Sejamos maduros: fracassamos enquanto sociedade, mas ainda temos chance de evitar novos massacres.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Guerra às drogas e letalidade do sistema penal. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, p. 115-125, 2013.

DouglasSilva

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