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A garantia extemporânea ao acordo de não persecução penal

A garantia extemporânea ao acordo de não persecução penal

Com a promulgação da Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime), diversas alterações legislativas foram efetivadas, sendo uma delas há ampliação do espaço de consenso em seara criminal, expandindo-se o campo negocial entre acusação e defesa através da instituição do acordo de não persecução penal (art. 28-A, do Código de Processo Penal). Essa inovação legal exige cautela, pois uma leitura abreviada poderia degenerar de forma teratológica sua essência e finalidade, concluindo, por exemplo, pela impossibilidade da aplicação deste instituto em processos criminais em tramitação.

À exposição do que foi dito, a redação do art. 28-A, do Código de Processo Penal, é a seguinte:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente.

O dispositivo legal se preocupou com a assertividade terminológica, de modo a indicar em qual momento procedimental o acordo de não persecução penal deveria ser proposto, assim, uma vez que “investigado” é status indicativo de que o imputado ainda não foi oficialmente denunciado pelo Ministério Público e, portanto, inexistindo relação jurídico-processual, o momento-limite para o seu oferecimento seria antes do recebimento da denúncia – pois a partir daí não se falaria mais na figura de “investigado”, mas na de “acusado” -, podendo ser feito no gabinete do próprio promotor de justiça ou, a depender do caso, em audiência de custódia.

Surge, no entanto, uma celeuma. Nos processos em tramitação, ou seja, em fase teoricamente imprópria para a propositura do acordo, pois em dissonância com a forma, seria possível a retroação do art. 28-A, do Código de Processo Penal, para alcançar processos em curso?

De acordo com o Enunciado 20 do Conselho Nacional de Procuradores Gerais “cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei n° 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia”. Assim, de acordo com esse entendimento, haveria óbice intransponível para a retroação do oferecimento do benefício negocial, em razão do princípio processual penal da imediatidade.

É ponto comum na doutrina viabilizar o raciocínio de que as normas processuais devem ser aplicadas observando-se o princípio da imediatidade, cuja razão estaria contida no art. 2°, do Código de Processo Penal, com a respectiva redação exortando que “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Contudo, essa óptica tende a ser opaca.

Na esteira de um ‘Estado meramente legalista’ – cujo traço distintivo é a inversão da hierarquia normativa, implicando uma hipervalorização das leis infraconstitucionais em detrimento dos dispositivos constitucionais -, os atos processuais praticados na vigência de uma lei x não poderiam sofrer quaisquer influências de uma lei posterior y, pois haveria a inflexibilidade normativa de que ‘o tempo rege o ato’, mantendo-se incólumes os atos e a ritualística já realizada. Assim, preleciona Fernando CAPEZ (2006, p. 51):

[…] o legislador pátrio adotou o princípio da aplicação imediata das normas processuais: o ato processual será regulado pela lei que estiver em vigor no dia em que ele for praticado (tempus regit actum). Quanto aos atos anteriores, não haverá retroação, pois eles permanecem válidos, já que praticados segundo a lei da época. A lei processual só alcança os atos praticados a partir de sua vigência (dali para a frente). 

O autor, não obstante, prossegue argumentando que estariam excluídos desse entendimento as normas de natureza material, ainda que previstas no diploma processual.

Aury Lopes Jr., propondo uma releitura do referido dispositivo, aduz que a interpretação meramente legalista do princípio da imediatidade não resistiria a uma filtragem constitucional, de modo que deveria haver uma consonância obrigatória com a regra do art. 5°, XL, da Constituição Federal, cujo teor garante que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Assim, a validade do dispositivo processual depende de sua adequada interpretação à luz do regramento constitucional – sempre direcionado a ampliar os direitos e garantias individuais e diminuir os espaços de arbítrio e decisionismo -, de modo que, mediante esta interação, poderia inferir-se que a premissa acerca da retroatividade benéfica engloba o gênero “lei penal”, cujas espécies são “lei penal material” e “lei penal processual”, pois seria impensável visualizá-las como compartimentos estanques, completamente desvinculadas entre si (LOPES JR., 2020, p. 127).

A garantia prevista no texto constitucional ressalta um valor ético-político que busca assegurar que o indivíduo sujeito ao processo penal não poderá sofrer os prejuízos – processuais ou penais – de um procedimento que nova lei tornou menos agressivo aos direitos de liberdade individual, pois, compreendendo o processo como um tipo de pena – pois já implica em demasiado sofrimento para o processado – não se pode impor uma carga sobressalente ao indivíduo, a qual o Estado oficialmente deixou de exigir. A forma é garantia, mas a cegueira deliberada para açoitar o frágil indivíduo perante o Leviatã através da manutenção de um procedimento abandonado é violência de Estado, função antagônica e imprestável à protetiva da célula individual.

Posta essas questões, não havendo quaisquer empecilhos à retroatividade de lei penal benéfica, seja de natureza processual ou material, e sendo ela uma garantia, bem como o acordo de não persecução penal sendo norma de natureza híbrida com prevalência de caracteres penais – assim, na interpretação de Capez, haveria a sucumbência da imediatidade, podendo a nova norma retroagir para a realização de um ato cujo momento procedimental adequado findou-se -, resta confirmado o direito ao imputado de ser premiado com as atualizações legais, em obediência a interpretação constitucional do art. 2°, do CPP, para além das cegueiras repressivas e autoritárias da literalidade não-contextual.


REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.


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Henrique Carneiro

Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Tiradentes (UNIT-AL). Advogado.

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