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A genealogia das brechas que realmente importam

“Negociata é todo grande negócio para o qual não o convidaram”

Apparício Torelly, o Barão de Itararé

Não é raro, nas várias esferas de debate público, escutarmos que alguma situação (mormente relativa a algum processo criminal e mais especificamente em relação a alguma decisão de absolvição ou de nulidade processual ou ainda trancamento investigativo) vivifica a máxima de que o resultado se deu por astúcia dos defensores em ‘explorar’ uma ou algumas ‘brechas na lei’.

A mitologia reinante que se assenhora desse tipo de discussão é a mesma que inunda a cultura popular de elementos que fazem crer que há algum componente axiológico necessário na punição, na criminalização, na ‘condenação’ – em sentido amplo. E mais: que atos, ritos, procedimentos e atitudes em contrariedade a essa constante básica seriam sempre fruto imperioso do logro, do acinte, da burla.

Em verdade, sabemos que, de um ponto de vista externo, uma decisão – como por exemplo a decisão judicial de mérito em um processo criminal – é fruto de todo um encadeamento de legitimações e de análises justificadas (motivadas/publicizadas) que, vistas analiticamente, não comportam uma opção necessariamente – e a priori – certa ou errada a respeito do caso em debate.  Não há análise jurídico-meritória obrigatoriamente correta ou incorreta em um panorama in natura, pré-processual, sob pena de deixar de haver qualquer razão para que haja um processo em si. E assim sendo, não há (nem pode haver), logicamente, um argumento eminentemente jurídico de ‘desconformidade’ entre o resultado que se verificou e o padrão de ‘dever ser’ que supostamente teria que orientar a condução jurisdicional dos fatos em análise.

O argumento que se pode ofertar aqui é o da melhor ou pior análise técnica dos elementos jurídicos em jogo, ou ainda, mais incisivamente, a discussão política e moral entre avaliações corretas ou equivocadas no manejo dos instrumentos legais.

Sobre esse último aspecto, mais um componente vem perturbar a divagação sobre o tema: como país de margem que somos (na esteira do que diria Zaffaroni) e de constitucionalismo jovem (e lamentavelmente imaturo), natural que nosso caldo cultural ainda não tenha conseguido assimilar cotidianamente o discurso proveniente da orientação política libertária da carta constitucional. Ou seja: seguimos em média acreditando que as liberdades consagradas perante o sistema jurídico-penal não são conquistas, não são fruto de um ambiente social e histórico-cultural de democracia e, basicamente, não são baluartes dos quais temos que nos orgulhar enquanto sociedade.

Dessa maneira, o discurso da brecha costuma quase sempre vir à tona no momento equivocado: sem negar que existam legítimas ‘brechas’ na lei (dada a imperfeição da linguagem e a imprecisão da aplicação dos conceitos, quiçá o mau caráter do intérprete)  que obrigam (ou permitem) giros hermenêuticos e  bravatas, vez por outra, geralmente o que muitos enxergam como ‘brecha’ nada mais é do que um âmbito de aplicação legal que – seja doutrinária, político-criminal ou constitucionalmente – comporta uma negação do próprio caráter absoluto (potencialmente tirânico) do expediente. Algumas dessas ‘brechas’ inclusive são frutos de escolhas políticas que foram pensadas para assim o ser – como é o caso da opção constitucional/legal para a vedação do uso de provas ilicitamente obtidas em investigação ou processo penal, bem como as várias paragens legais que consagram a fórmula do in dubio pro reo, aceitando-se a presunção como uma ‘verdade opcional’ que se escolhe defender de antemão até que mingue o prazo para que ela seja debelada.

Há menos ‘brecha’ do que se pode supor, e muito mais momentos de opção (consciente) jurídico-penal pelo espectro democrático-garantista do que alguns gostariam de admitir.

Contudo, sempre é hora de debater a brecha: tomemos como exemplo a infração penal prevista no Artigo 149 do Código Penal, assim, atualmente, definida: Redução a condição análoga à de escravo – Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

A possivelmente assim analisada ‘brecha’ estaria justamente – na visão de alguns – na vagueza e na indefinição semânticas dos elementos “jornada exaustiva” e “condições degradantes”. Na impossibilidade de definir linguisticamente e de forma exaustiva tudo o que se quer estabelecer nessa marca, o legislador deixa um brete de análise para o intérprete. Estabelece a conotação negativa e adjetiva – “forçados”, “exaustiva”, degradantes” – e o tipo de situação que eventualmente se enquadraria na norma. A discussão sobre o que exatamente são (ou deveriam ser) esses conceitos perpassa uma série de outros fatores, inclusive a casuística.

Caso alguém fosse absolvido dessa imputação penal, por que se considera que sua prática não se enquadra nessas situação e adjetivação legais, não faltariam pessoas a bradar que houve um aproveitamento da ‘brecha’ legal, como se deixar de abarcar toda e qualquer situação (para, ao contrário, abarcar algumas específicas e selecionadas particularidades) não fosse a ideia inicial da taxativa lei penal.

Recebi com curiosidade a notícia de que uma das ‘bancadas’ parlamentares federais mais adeptas de discursos de punitivismo e afrontosos aos cânones das liberdades e emancipações individuais (não obstante – em boa parte – se considerar adepta de um certo liberalismo de conceito confuso e impropriedades históricas e filosóficas gritantes), a dita “Bancada Ruralista”, trabalha fortemente para, via Projeto de Lei (n. 3842/12), retirar do texto legal acima referido as destacadas menções. Segundo o relator, Deputado Moreira Mendes (PSD-RO), e um dos articuladores da bancada, o Deputado Luís Carlos Heinze (PP-RS), a “indefinição” dos termos poderia “facilitar” o enquadramento legal de condutas nessa infração, punida com certo rigor abstrato (pena máxima de oito anos de prisão e, conforme o parágrafo segundo do mesmo artigo, ser aumentada em até a metade se os vitimados pela prática são adolescentes ou crianças e houver elementos de discriminação relativa a origem, raça, cor e etnia na prática). Mais: o grande mote da bancada na insurgência contra a redação atual da lei estaria na possibilidade de que a prática, transitada em julgado, pudesse acarretar em chamamento à baila dos efeitos da Emenda Constitucional n. 81, que propõe como punição adesiva a expropriação de imóveis onde se verificava a existência de trabalho escravo. Nesse momento, impossível não ter sentido pontada equivalente à descoberta do popularmente chamado ‘x’ da questão.

Estranhamente, arautos clássicos do rigorismo punitivista querem criar uma imensa brecha legal que afasta considerações inerentes à questão da definição do “trabalho escravo” e à sua condição análoga. Justamente em uma tutela legal que é invocada, apoiada e até exigida por todos os órgãos internacionais de proteção aos Direitos Humanos, convenções atreladas aos temas, e mesmo a Constituição Federal. Em um impressionante surto político-criminal racionalizador, o time ruralista do Congresso propõe que haja uma restrição linguística que desencadeie uma correlata restrição de incidência, visando neutralizar o que – em sua visão – seriam coberturas exageradas da lei penal e a possibilidade ‘terrível’ da consequência-maior da expropriação imobiliária.

Eis a verdadeira e preocupante brecha: o vácuo onde justamente a ampliação de atividade legislativo-punitiva era bem vinda. A relativização de questões atinentes aos Direitos Humanos é sempre sorrateira e sempre silenciosa. Não há proposta de rompimento: há proposta de ‘modernizações, ‘flexibilizações’, ‘inovações’ na roupagem e no visual, que perfuram, no entanto, em busca – lenta – das bases fundamentais.

O fato é que se acompanha a olhos vistos a tentativa de criar uma genuína brecha na lei, que veda a discussão relativa a maior proteção dos trabalhadores e seus direitos fundamentais. Uma liberalidade que possui como objetivo o de ser claramente uma brecha. Uma liberalidade que não tem pedigree  de cunho limitador, taxativo, garantidor, contra cultural, criminológico, político-criminal ou qualquer outra ideologia jurídico-criminal que esteja na maré da racionalização e contenção da volúpia punitiva. É uma brecha criada para assim o ser: é a lei penal sendo defendida por punitivistas de plantão em um singelo momento onde ela vai elaborada para punir menos, e pior. É a instalação de fábrica de um vírus no software original.

Quando o reacionarismo de plantão propõe a retração do sistema, a diminuição da incidência da malha punitiva fiquemos atentos: ali está uma genuína brecha. Feita para desproteger. Pronta para ser explorada.

GabrielDivan

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