A gravação ambiental clandestina e a cadeia de custódia
A gravação ambiental clandestina e a cadeia de custódia
Na renomada obra de fôlego “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Malatesta já afirmava que
a prova não faz mais que refletir no espírito humano a verdade objetiva; é através dela que chegamos à posse da verdade (2013, p. 71).
Aury Lopes Júnior, de seu turno, leciona que as provas se dirigem precipuamente à reconstrução, via processo, de um fato histórico:
O processo penal é um instrumento de retrospecção, de reconstrução aproximada de um determinado fato histórico. Como ritual, está destinado a instruir o julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica de um fato. Nesse contexto, as provas são os meios através dos quais se fará essa reconstrução do fato passado (crime). (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 535).
Com efeito, a prova nada mais é senão o instrumento lançado à disposição das partes para a verificação dos fatos cuja ocorrência elas pretendam demonstrar em um processo, buscando por meio da constatação material de tais fatos (thema probandum) a formação do convencimento do magistrado em favor das teses arguidas.
Se a prova é conditio sine qua non para se desvelar a verdade sobre algo, a integridade da prova é crucial para que esta verdade seja a mais representativa possível do que ocorreu. Nesse propósito de assegurar a pureza e a plenitude do elemento probatório é que merece destaque a chamada cadeia de custódia das provas.
A temática envolvendo a cadeia de custódia ainda não recebeu a devida atenção da doutrina penalista. De fato, os livros que buscam explicar o que é e qual a sua importância são, normalmente, os manuais de perícias, cíveis ou criminais, cuja peculiar preocupação com a cadeia de custódia é essencial para as conclusões periciais.
Domingos Tochetto, perito criminalista, afirma que cadeia de custódia é um sinônimo de qualidade. Mas, diferentemente de outros países, no Brasil ainda não há legislação prevendo os procedimentos a serem adotados para preservar a cadeia de custódia e, naturalmente, a confiabilidade da prova (TOCHETO, 2013, p. 5).
De modo geral, a cadeia de custódia corresponde à observância a protocolos de procedimentos destinados a garantir a originalidade, autenticidade e a integridade de um vestígio, isto é, consiste na documentação de todo o histórico cronológico do vestígio que, se alçado ao patamar de evidência, poderá até servir como prova.
Embora não exista uma legislação regulamentando a cadeia de custódia, o legislador não se mostrou alheio quanto à conservação das fontes de prova, pois elegeu, no art. 6º, inciso I do Código de Processo Penal, o preceito geral da ideia de uma cadeia de custódia, e assim o fez ao determinar que
logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos.
Em outras palavras, a inexistência de legislação regulamentando toda a manutenção da cadeia de custódia não retira do Estado – titular do jus puniendi – o dever de preservação da integridade probatória da fonte de prova, que há de ser observado desde o momento da colheita do elemento probatório até a sua eventual valoração.
Sobre a importância da cadeia de custódia, o juiz catarinense Alexandre Morais da Rosa bem lembra que
o trajeto percorrido entre a obtenção de um elemento probatório, especificando as condições, a higidez e completude do material que será usado para fins probatórios, precisa ser levado a sério (ROSA; 2017, p. 446).
Em linhas gerais, está em jogo a confiabilidade do elemento probatório, que ganha relevância quando a decisão depende da análise de provas técnicas.
Conquanto a preocupação com a conservação do material probatório seja correlata a todas as fontes de prova, é justamente quanto às fontes de prova extraprocessuais (produzidas fora do processo. Ex: interceptações telefônicas, gravações clandestinas, exames de DNA) que se exige maior cuidado, pois o material pode sofrer manipulação, especialmente pela possibilidade de adulterações, supressões, edições etc.
Centremo-nos, para fins de delimitar o assunto, nos casos de gravação ambiental clandestina, dada a sua “constância” nas colaborações premiadas.
Note-se que a gravação ambiental clandestina é aquela praticada entre presentes, em ambiente público ou privado, feita por um terceiro que atua efetivamente na conversa, e tudo ocorre sem o conhecimento dos demais participantes do diálogo. Não vem ao caso, neste momento, analisar a licitude ou não da obtenção da prova, mas apenas considerar que, ao final, os registros captados ficam em posse apenas do terceiro.
A partir daí, até a entrega do conteúdo aos órgãos de persecução penal, é praticamente impossível saber, por exemplo, quem foram as pessoas que tiveram acesso direto aos registros audiovisuais; como estes registros foram armazenados e, inclusive, em qual aparelho foram captados; tampouco se o conteúdo captado é o original ou simples cópia, ou se houve acréscimo, supressão ou modificação dos registros etc.
A manutenção da cadeia de custódia é imprescindível para a realização dos mais diversos exames periciais que poderão atestar ou não a confiabilidade da prova, tais como: o exame de verificação de edição em áudio (detecta possíveis adulterações de áudio); o exame de verificação de edição em imagem (apura possível adulterações de imagens); o exame de verificação de locutor (busca verificar a autoria da fala) etc.
Observe-se que tão só o fato de o material entregue não ser o original, mas sim uma simples reprodução daquele – ainda que na íntegra – pode prejudicar e tornar imprestável a perícia destinada à análise de eventual edição de som/imagem:
Cópias e reproduções podem, em vários casos, acarretar alterações no formato original e adicionar degradações ao material originalmente registrado, o que pode dificultar que alguns elementos significativos à perícia sejam detectados, especialmente nos exames de verificação de edição. (TOCHETTO, 2013, p. 331)
Aí está a relevância, para fins processuais e probatórios, em se ter um registro fiel de toda a cronologia da evidência, documentando-se assim todo o trajeto desde a captação do vestígio no mundo dos fatos até a sua efetiva incorporação, como evidência, no processo, para saber quem a manuseou, se o conteúdo estava lacrado (inviolado), como foi captada, e tudo mais que sirva para dar confiabilidade à prova.
No caso da gravação ambiental clandestina se nota que a ausência de controle estatal sobre a cadeia de custódia – principalmente no que se refere ao momento anterior ao seu envio aos órgãos de persecução penal – faz dela um elemento probatório frágil e duvidoso, tornando a prova, em nosso entender, absolutamente imprestável.
Agora, se o registro audiovisual na íntegra não se presta, por si só, a dar credibilidade à prova – pelos fatores acima expostos – que se dizer, então, quando o conteúdo se apresenta apenas parcial, não permitindo a contextualização do assunto entabulado, ou seja, indicando clara descontinuidade do diálogo que foi captado?
Se houver omissão de conteúdo, ainda que decorrente de situação acidental (sem má-fé), a validade da gravação ambiental clandestina como elemento probatório já restou comprometida, sendo assim ilícita e processualmente inútil:
Nos casos de interceptação telefônica, de dados, agente infiltrado, captação ambiental, imagens, filmagens, dentre outras modalidades ocultas, a manutenção de todo o material obtido, com a exclusão por parte do julgador e não do jogador unilateralmente, é condição à validade da prova. A juntada parcial, deletada, omitida, de boa ou má-fé, traz consigo a ilicitude da prova e a contaminação das provas dela decorrentes (fruto da árvore envenenada). (ROSA, 2013, p. 447).
Não se trata, repita-se, de analisar se houve má-fé ou não de quem gravou, mas sim de adotar a presunção de que pode ter ocorrido manipulação indevida, e que este procedimento irregular pode tanto ser utilizado para a incriminação de um inocente como para isentar de qualquer responsabilidade penal o verdadeiro criminoso.
Destarte, em caso de supressão de registros audiovisuais e de descontinuidade da conversa o elemento de prova deve, de pronto, ser descartado, não havendo se cogitar em qualquer valoração, pois a valoração da prova é estágio que sucede sua postulação, admissão e produção, e os recortes da gravação impedem sua admissão.
A propósito, cabe ainda considerar que, mesmo que aparentemente captada a conversa em sua íntegra, muitas vezes o diálogo gravado não vai além de uma meia-verdade, ou seja, é apenas parte de um todo que nem sempre é possível de ser conhecido, pois um diálogo possui começo, meio e fim, e por vezes uma conversa gravada não é mais que a extensão de diálogos pretéritos, tratados em outras ocasiões, daí porque se pode afirmar que é muito difícil saber o exato contexto em que uma conversa foi realizada, mesmo quando a gravação, aparentemente, não possua edições e omissões.
Ninguém sabe – exceto o colaborador ou terceiros igualmente interessados e/ou beneficiados – o contexto em que o diálogo foi entabulado. Logo, como dar validade a trechos esparsos de conversas que podem ser resultantes de perguntas capciosas, indutivas, ou frutos de mera brincadeira ou, até mesmo, de simples mentiras?
Somando-se, portanto, (1) a incerteza do contexto fático em que veiculadas as conversas, (2) a inobservância da cadeia de custódia desde a coleta do registro áudio/visual até o envio aos agentes estatais responsáveis pela persecução penal (3) a possibilidade de modificação – de boa ou má-fé – do conteúdo gravado, (4) o eventual direcionamento astucioso da conversa para os fins almejados por quem está gravando, dentre outros circunstantes, conclui-se que a admissão da gravação ambiental como meio de prova ou de identificação de fonte de provas é, no mínimo, muito questionável.
Em nosso pensar, a gravação ambiental clandestina não goza do mínimo necessário de confiabilidade, e deve, em qualquer caso, ser vista com reservas, mais ainda se levarmos em conta o vício de ilicitude que permeia uma conversa gravada sem o conhecimento de terceiros (nada obstante, devemos lembrar, o posicionamento atual da jurisprudência venha concedendo demasiado valor a este meio de obtenção de prova).
REFERÊNCIAS
LOPES JÚNIOR; Aury. Direito processual penal. 10. ed., São Paulo: Saraiva, 2013.
MALATESTA; Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Campinas: Servanda Editora, 2013.
ROSA; Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4. ed. Florianópolis: Emais, 2017.
TOCHETTO; Domingos. Balística forense: aspectos técnicos e jurídicos, 7. ed. São Paulo: Millennium, 2013.
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