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A guerra, o processo e a pena de morte em “Glória feita de sangue” (Kubrick)

Por Maurício Sant’Anna dos Reis

Ambientado na Primeira Guerra Mundial, Glória feita de sangue (Paths of Glory, 1957, 88 min) de Stanley Kubrick é um verdadeiro manifesto anti belicista – mas também nos ajuda a questionar o sistema penal. Mais do que isso, é uma passagem para compreensão da subjetividade e da perversidade humana, calcada no utilitarismo e em decisões pragmáticas. Aviso que a presente resenha conterá sim spoilers, todavia, em se tratando de um trabalho do genial Kubrick, tenho certeza que em hipótese alguma substituirão o prazer ao assistir esse belo filme.

Durante a primeira guerra mundial, o pelotão do Coronel Dax é enviado em uma missão suicida. Ante a impossibilidade de seguir, após uma série de baixas em seu avanço, o pelotão recua causando a ira do comandante da divisão, General Mireau, que em vista da ordem descumprida chega ao ponto de determinar o bombardeio do caminho de volta do pelotão com o pretexto de coagir seus homens a seguir atacando (ordens essas que são reusadas pelo oficial responsável). O que se segue daí são desdobramentos da negativa de cumprir a ordem absurda.

Aleatoriamente três homens são enviados à Corte Marcial para responderem por sua insubordinação. Encarregará de sua defesa o Coronel Dax, que na vida civil é um grande advogado criminalista. São acusados de traição o Cabo Philippe Paris, o Soldado Maurice Ferol e o Soldado Pierre Arnaud. Já em seu início o oficial instrutor (observado solenemente pelo Gerneral Mireau, informa que abrirá mão das formalidades passando imediatamente a palavra à acusação para que proceda o interrogatório dos réus. Dax, todavia, interrompe o ato pleiteando a leitura do inquérito (feito às pressas) em vista da necessidade para a defesa que os acusados tomassem conhecimento do teor da acusação, pedido que é negado para que não caia o procedimento em tecnicismo. Nesse ponto, fica claro que o julgamento que se apresenta é um mero simulacro, julgamento pró forma com o único intuito de chancelar posterior condenação, ainda que, para isso, qualquer expectativa de um julgamento justo seja sepultada.

Cena do tribunal:

O veredito, apesar de todos os esforços do Coronel Dax é a condenação à morte por fuzilamento. Enquanto os prisioneiros aguardam seu destino, Dax recebe a informação de que Mireau ordenara o ataque aos próprios homens, informação a qual faz chegar ao General George Broulard na esperança de impedir o fuzilamento dos condenados, todavia seu pedido é negado, entendendo Broulard pelo seguimento da execução. Entrementes, os prisioneiros recebem o capelão para encomendarem sua morte. Inconformado (e bêbado), Arnaud questiona a salvação oferecida pelo padre e, após investir contra Paris, acaba ficando gravemente ferido[1]. Esse novo ferimento traz mais uma situação no mínimo inusitada ao fuzilamento. Enquanto Paris e Ferol caminham para o pelourinho, Arnaud é levado em uma maca e imobilizado no poste[2]. Após esse bizarro ritual cumpre-se a sentença. A visão da execução somada a do julgamento apenas permitem uma conclusão: o procedimento (ritual do sofrimento) empregado é meramente formal e apenas busca legitimar o ato fim, ou seja, por mais que se quisesse os soldados mortos, não sendo possível esse desiderato no campo de batalha, seria a pena capital sua solução.

Em resumo, um General que sob o pretexto de autossatisfação do ego envia seus homens em uma missão suicida (ato portanto sem sentido), o julgamento meramente formal ante a negativa de cumprimento deste ato (julgamento também sem sentido) e a execução da pena de morte, inclusive de um homem já à beira da morte (execução sem sentido) servem de pano de fundo para ilustrar o quão sem sentido é a guerra. Não existe sentido em um general mandar deliberadamente homens à morte, não há sentido na carnificina de civis inocentes, não há tampouco sentido na dor dos que sobrevivem. O retrato da guerra feito por Kubrick nos ilustra que em uma guerra a maioria é de perdedores; os que vencem dela não participam, e talvez vençam somente por conta de seus interesses escusos.

Pensada a partir da atualidade do sistema penal, a obra pode ilustrar a guerra às drogas (já comentei alguma coisa aqui), em que policiais, traficantes, usuários e transeuntes são vítimas todos os dias. Quando processos são abertos esses apenas servem de dormente legitimador da condenação (mais das vezes certa desde antes do processo começar), condenação essa que será executada segregando da sociedade aqueles que nunca dela fizeram parte.

https://www.youtube.com/watch?v=rcOHoeJHTLM

 

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[1] Os ferimentos podem ser graves demais para permitir que ele aguente até à execução.

[2] Ainda será preciso comprovar que ele ainda vive.

MauricioReis

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