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A (i)legal perpetuidade dos antecedentes na 1ª fase dosimétrica e o retorno do tema ao STF

A (i)legal perpetuidade dos antecedentes na 1ª fase dosimétrica e o retorno do tema ao STF

Por Iara Maria Machado Lopes

Em agosto, o Supremo Tribunal Federal volta a julgar a matéria relativa ao Recurso Extraordinário nº 593818. Nele, o Ministério Público de Santa Catarina contestou decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do estado. A 1ª Câmara Criminal do TJSC não considerou como maus antecedentes na primeira fase dosimétrica condenação anterior com pena extinta há mais de 5 anos. 

O caso, com repercussão geral reconhecida, será decisivo ao fornecer uma orientação mais sólida sobre um antigo dilema a qual os operadores de direito passam ao momento de aplicação da pena. Muito mais do que esperar impacientemente o veredito, é oportuno, nós, como representantes da comunidade jurídica interessada, nos posicionarmos à respeito e mobilizar a questão dentro do debate público.

Adverte-se o (a) leitor(a): aqui se defenderá sinteticamente a posição de que condenações cujas penas já tenham sido extintas há mais de 5 anos não deverão ser consideradas como maus antecedentes na fixação da pena-base em novo processo criminal. 

No Brasil uma sanção criminal é imposta a partir de um método de aplicação trifásico de pena. No primeiro momento deverão ser analisadas se as circunstâncias judiciais do artigo 59, do CP, se fazem presentes para compor a pena base. Depois, verificar a existência de circunstâncias atenuantes e agravantes para estabelecimento da pena provisória. Por fim, na terceira fase, averiguar a aplicação ou não de causas de aumento e de diminuição a fim de fixar a pena definitiva que será imposta.  

É precisamente na primeira e na segunda fase da dosimetria que reside o imbróglio a que se refere o presente texto. Isso porque, na primeira, é que serão analisados os antecedentes do acusado e, na segunda, a existência de reincidência. As duas circunstâncias – antecedentes e reincidência – possuem definições muito similares em que pese serem diferentes e estarem em momentos distintos da aplicação da pena. Essa aproximação, por consequência, é que produz conflitos na prática da atividade jurisdicional.

Ambas averiguam a existência de anterior condenação penal já transitada em julgado em desfavor do acusado para que sua pena seja exacerbada em novo processo criminal. Uma fundamental diferença é que para fins de reincidência esta condenação anterior só poderá agravar a nova se extinta a sua pena pelo período depurador de no máximo de cinco anos (artigo 64, I, do CP). Já para a avaliação dos maus antecedentes, na primeira fase dosimétrica, o Código Penal não estipulou um prazo para que as antigas condenações incidam sobre nova análise. A partir dessa vacuidade legal, então, é que surgem as divergências. 

Por me filiar a arranjos mais garantistas, costumo conservar lentes que admitem olhares mais constitucionais e, em última análise, mais benéficos ao réu no fenômeno criminal. Partindo desse pressuposto, me parecem equivocadas as concepções analíticas que cogitam a possibilidade dos maus antecedentes prejudicarem acusados por mais tempo do que o prazo que o Código estipula para viger sua reincidência. 

A lógica por trás deste posicionamento pode ser demasiadamente simples. Não parece justo que uma condição mais complexa – a reincidência -, que, inclusive, gera diversos outros efeitos negativos ao réu, perdure menos do que outra potencialmente mais modesta – os antecedentes. Essa ordenação é tão verdade que o próprio STF e a doutrina majoritária entendem os antecedentes criminais como tudo aquilo que não é reincidência, fornecendo aos primeiros uma natureza residual frente à segunda. 

Assim sendo, “(…) se essas condenações não mais prestam para o efeito da reincidência, que é o mais, com muito maior razão não devem valer para os antecedentes criminais, que é o menos” (STF. RHC 118.977, Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 18/3/2014). 

Ainda que se possa tecer críticas sobre ele, torna importante compreender que o Código Penal deve ser lido sistematicamente, ou seja, de forma a concebê-lo como um sistema, e não um amontoado de regras desarmônicas. Dessa forma, parece pouco justo e pouco racional aceitar mensagens tão conflitantes sobre os efeitos das condenações anteriores para outras mais recentes. 

Logo, por autorizada analogia, conforme colocam Salo de Carvalho e Amilton B. de Carvalho deve-se consentir em “(…) limitar o prazo de incidência dos antecedentes no marco de cinco anos – delimitação temporal da reincidência -, visto ser a única orientação permitida pela sistemática do Código Penal” (No livro Aplicação da pena e garantismo penal, de 2004, na p. 52).

Há de ser dito ainda que o risco de se admitir que os maus antecedentes se conservem por mais de cinco anos é o de simplesmente se excluir ou subestimar o propósito do artigo 64, I, do CP.  Os(as) legisladores(as) instituíram esse prazo com razões e motivos. Situações análogas e mais simples, senão estiverem formalmente legalizadas, deverão respeitá-lo ou, ao menos, deverão se constituir no benefício de não serem mais maléficas. Se é oportuno alterar a lei e robustecê-la para criação de novos prazos é outra discussão, contudo enquanto assim ainda está, deve ser obedecida. 

Sobre o assunto, já assentou inclusive o min. Gilmar Mendes: “A possibilidade de sopesarem-se negativamente antecedentes criminais, sem qualquer limite temporal, ad aeternum, em verdade, mostra-se pena de caráter perpétuo revestida de legalidade”. Foi com essa concepção que o Min. determinou no HC 162305/SP, em 2018, que o juízo de 1º grau do caso deveria recalcular a reprimenda exclusivamente pela pena-base ter sido aumentada por pena de condenação anterior extinta há mais de cinco anos.

Há na citação do Ministro um importante argumento: o perigo de se legitimar a perpetuidade formal e social de uma condenação. A ilegal aceitação da perpetuidade dos antecedentes criminais na primeira fase da dosimetria arrisca condenar o acusado a carregar sobre si eternamente o peso de não possuir um direito ao esquecimento. Arcando, logo, tanto com a certeza de que qualquer nova pena será sempre aumentada independente do tempo, lugar, condições, situação, quanto com a eterna rememoração de um estigma social contra ele colocado. 

Ante a situação, não é descomedimento afirmar que a utilização de sentença condenatória para negativar os antecedentes indefinidamente ofende os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade, da razoabilidade, da presunção de inocência e, de acordo com a racionalidade da decisão acima referenciada, da vedação da instituição de penas com caráter perpétuo.

Ainda que os mais afoitos por punição se coloquem avessos às teses acima defendidas, sob a indignação por vezes legítima de não verem a pena-base ser qualificada por maus antecedentes existentes, há outra perspectiva. Mesmo eu pessoalmente possuindo divergências, lembro que segundo corrente majoritária dos Tribunais não é bis in idem considerar, quando justificado, condenações irrecorríveis e anteriores na primeira e na segunda fase da dosimetria. Defende-se apenas neste artigo que, para isso, as reprimendas de todas elas não poderão ter sido extintas há mais de 5 anos, sob pena de serem irrazoáveis, ilegais e perpétuas. 

A ver agora como o STF decidirá sobre o assunto.

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Iara Maria Machado Lopes

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Pós-graduanda em Direito e Processo Penal pela ABDConst. Autora do livro "O sistema penal brasileiro em tempos de lavajatismo". Colunista semanal pelo portal da Emais Editora. Membro do corpo editorial da Revista Acadêmica do curso de Graduação em Direito da UFSC (Revista Avant), do Grupo de Estudos e Pesquisas Cautio Criminalis e do Grupo de Estudos e Extensão Legisla UFSC.

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