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A (im)pertinência da prova testemunhal acusatória

A (im)pertinência da prova testemunhal acusatória

De acordo com o art. 129, inciso I, da Constituição Federal, incumbe ao Ministério Público provocar a jurisdição, por meio da ação penal pública, para buscar a responsabilização criminal de acusados da prática de infrações penais.

No âmbito do processo criminal, recai sobre o titular da ação penal o ônus de apresentar provas da materialidade e da autoria delitiva, sendo que a atividade probatória encontra seu primeiro limite na Carta Magna, a qual, em seu art. 5.°, inciso LVI, repudia a utilização de provas ilicitamente obtidas.

Mas os limites à atividade probatória acusatória vão mais além.

A produção probatória acusatória no processo criminal deve guardar estrita observância do devido processo penal, de maneira que os elementos a serem submetidos ao contraditório judicial devem ter em mira os fatos descritos na inicial acusatória, ou seja, o thema probandum.

E do devido processo legal decorre que, recebida a denúncia ou queixa-crime e citado o acusado, este passará a exercer sua defesa em face dos fatos narrados na peça inaugural. Dito de outro modo, a produção probatória a encargo da acusação, notadamente a testemunhal, deve ter relação de pertinência com os fatos objetos da denúncia ou queixa-crime.

Segundo o ensinamento dos léxicos, pertinência é sinônimo daquilo que concerne ao assunto ou que se refere a algo ou a alguma coisa, apropriado à finalidade a que se destina (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Editora Objetiva, 2002, p. 2.197).

A denúncia (ou queixa), portanto, delimita não apenas a acusação objeto do processo, mas fixa o alvo da atividade probatória a ser desenvolvida pelo autor da ação penal (Ministério Público ou querelante).

Estas linhas nasceram da atividade forense cotidiana do seu autor, enquanto advogado militante na área criminal, o qual se exaspera com frequentes audiências em que, policiais arrolados na denúncia, comparecem à solenidade e, o que mais fazem, é desfiar um rosário acerca dos supostos antecedentes do acusado, não raro pondo-se a relatar vezes outras em que teriam tomado conhecimento de crimes pretéritos que teriam sido praticados pelo imputado.

Nada mais agressivo ao devido processo legal e à presunção de inocência.

E o que mais preocupa, é a complacência com que os juízes costumam receber tais relatos, geralmente desacolhendo questões de ordem suscitadas pelos advogados, estes na tentativa de fazer com que as declarações testemunhais se atenham aos fatos controvertidos na denúncia.

Pior fica quando, na sentença, os magistrados utilizam como elemento de fundamentação esses relatos testemunhais absolutamente impertinentes, o que vem se mostrando prática cada vez mais corriqueira no meio forense.

E a mesma complacência não se verifica quando a defesa, buscando produzir prova abonatória da conduta social e da personalidade do acusado, e os juízes cerceiam as perguntas do advogado às testemunhas.

E o Código de Processo Penal até oferece instrumentos para que os magistrados estabeleçam limites à atividade probatória testemunhal do Ministério Público, mantendo-a dentro da delimitação estabelecida pela denúncia. Veja-se o teor do § 1.° do art. 400 do CPP: “As provas serão produzidas numa só audiência, podendo o juiz indeferir as consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias”.

Antes disso, o art. 212, caput, do Código de Processo Penal, estabeleceu o sistema chamado cross examination, permitindo perguntas diretas das partes às testemunhas, conferindo ao juiz, no entanto, o papel de presidir o ato e não permitir que a condução das indagações pelo agente ministerial conduza o depoimento da testemunha para fora dos limites fixados pela imputação articulada na denúncia.

Esse mesmo dispositivo legal é taxativo ao dispor que cabe ao juiz não admitir sejam formuladas às testemunhas perguntas que não tiverem relação com o caso penal sub judice: “As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”.

Prova testemunhal acusatória

A doutrina processual penal é escassa ao tratar do tema, até mesmo porque a delimitação da pertinência da prova testemunhal com o caso penal controvertido surgiu com a reforma introduzida pela Lei n.° 11.690/2008. Ainda antes da edição desta lei, José Frederico MARQUES (Elementos de Direito Processual Penal. Editora Forense, 2. ed., 1965, p. 274, vol. II) já abordava a questão:

atos que não pertençam ao litígio e que relação alguma apresentem com o objeto da acusação, consideram-se fatos sem pertinência, e que, portanto, devem ser excluídos do âmbito da prova in concreto.

Por sua vez, Nereu GIACOMOLLI (O Devido Processo Penal. Editora Atlas, 3.ª, 2016, p. 211) ensina que

Impertinentes são as provas inoportunas, inadequadas, desvinculadas do objeto do processo, sem entidade para dar suporte à convicção do julgador ou sem aptidão demonstrativa do fato.

Não se trata de cercear o Ministério Público. Cuida-se, sim, de fazer com que a atividade probatória acusatória se desenvolva em pertinência com a imputação objeto da denúncia. O processo criminal não se presta à construção de uma narrativa romanceada acerca da vida pregressa do acusado. O processo criminal deve tratar sobre fatos concretos. Precisamente, sobre os fatos descritos na denúncia.

Questão de respeito ao devido processo legal. Nada mais do que isso.

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Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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