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A (im)possibilidade de um depoimento sem dano


Por Ingrid Bays


Criado no ano de 2003, na 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, o projeto do Depoimento Sem Dano vem sendo adotado pelas comarcas de todo o Brasil e se tornou, inclusive, uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça[1]. O intuito básico do projeto é a execução de um serviço especializado para a escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais.

De início, cumpre ressaltar a condição de sujeito de direito da criança, que deixou de ser observada como mero “objeto” de direito, o que é uma recente conquista no campo da infância. A partir disso, surgem as mais variadas discussões acerca da participação da criança nos processos judiciais, notadamente entre os campos jurídicos e da saúde, considerando que o Conselho Federal de Psicologia possui ressalvas quanto ao procedimento do Depoimento Sem Dano e a participação do psicólogo.

Vejamos o disposto no artigo 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança:

1. Os estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhes respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.

2. Para esse fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhes respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.

Importante referir, no entanto, que “considerar a ‘fala da criança’, como prevê a Convenção, necessariamente não exige o uso da palavra falada, porquanto o sentido da norma é muito mais amplo, estando a significar a necessidade de respeito incondicional à criança, como pessoa em fase peculiar de desenvolvimento” (AZAMBUJA, 2010, p. 211-242). E é evidente que o tema e suas divergências atingem a todos nós que atuamos em processos criminais, os quais eventualmente terão uma criança ou adolescente como vítima ou testemunha e nos preocupa sobremaneira a ausência de preparação de todos os agentes envolvidos nesse processo de inquirição da criança, principalmente porque, nesses casos, é evidente que somente o conhecimento no campo jurídico não nos basta.

Para que possamos entender melhor, o Depoimento Sem Dano tem início com a retirada da criança ou do adolescente do ambiente formal da sala de audiências, deslocando-a para uma sala especialmente projetada para tal fim, que estará ligada, por vídeo e áudio, ao local onde se encontram o juiz, o promotor de justiça, o advogado, o réu e os servidores de justiça, todos podendo interagir durante o depoimento (DALTOÉ CEZAR, 2010, p. 71-86). Com isso, entende-se que o ambiente se torna mais receptivo e tranquilo, contando também com o auxílio de técnicos previamente preparados para a execução desta tarefa, lembrando que o depoimento é integralmente gravado e juntado aos autos para que possa ser analisado pelo magistrado e pelas partes a qualquer momento.

Verifica-se, de imediato, que as intenções do projeto são bem objetivas e delineadas. Ocorre que, já em sua nomenclatura existe um equívoco, uma vez que impossível reviver um trauma sem que qualquer dano seja gerado (GOMES, 2010, p. 133-150). Com isso, o que se procura é uma redução de danos, que não acontece simplesmente com a aplicação do projeto, mas aliada a outros acompanhamentos e fatores fornecidos à criança ou ao adolescente pelo sistema de justiça.

Para que o projeto seja uma saída viável deveria ser mais do que necessário (e sim obrigatório, no mínimo) recursos humanos suficientes (equipe técnica especializada) e de infraestrutura, a fim de que não se aumente e explore o dano já causado à criança ou ao adolescente e, além do mais, relativize as garantias constitucionais do acusado. As dificuldades ainda existentes, principalmente nas comarcas do interior, passam a “manchar” a ideia principal do projeto do Depoimento Sem Dano. Não obstante, o projeto ainda não possui respaldo legal, o que, para parte da doutrina, torna flagrantemente escancarado o desrespeito do procedimento utilizado no que guarda relação com o princípio da legalidade (CAMARGO, 2011, pp. 10-11).

Diante dessa simplória exposição, convido a todos os leitores do Canal Ciências Criminais para que debatamos acerca do tema, contando, inclusive, experiências da labuta forense no que diz respeito ao Depoimento Sem Dano e da efetividade deste nos casos em questão. Conto com vocês para ampliarmos o conhecimento, seja prático ou téorico, a respeito do tema.


REFERÊNCIAS

AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A inquirição da vítima de violência sexual intrafamiliar à luz do superior interesse da criança. In: POTTER, Luciane (org.) Depoimento sem dano: uma política criminal de redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 211-242.

CAMARGO, Rodrigo Oliveira de. A face “procedimental” do depoimento sem dano. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 19, n. 227, p.10-11, out. 2011.

DALTOÉ CEZAR, José Antonio. A escuta das crianças e adolescentes em juízo. Uma questão legal ou um exercício de direitos? In: POTTER, Luciane (org.) Depoimento sem dano: uma política criminal de redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 71-86.

GOMES, Décio Alonso. Confrontação do depoimento com redução de danos (abordagem desde uma perspectiva criminal). In: POTTER, Luciane (org.) Depoimento sem dano: uma política criminal de redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 133-150.


NOTAS

[1] O Depoimento sem Dano é uma prática recomendada pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da Recomendação CNJ nº 33/2010, de 23 de novembro de 2010.

Ingrid

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