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A inconstitucionalidade do art. 11 da Lei Antiterrorismo


Por Ruchester Marreiros Barbosa


Ainda na saga sobre os devaneios do legislador infraconstitucional, nos parece flagrantemente inconstitucional a ampliação da competência da justiça federal realizado pelo art. 11 da lei 13.260/16, que assim dispõe:

“Art. 11.  Para todos os efeitos legais, considera-se que os crimes previstos nesta Lei são praticados contra o interesse da União, cabendo à Polícia Federal a investigação criminal, em sede de inquérito policial, e à Justiça Federal o seu processamento e julgamento, nos termos do inciso IV do art. 109 da Constituição Federal.”

É cediço que a competência da justiça federal é definida no art. 109 da CR.

As hipóteses que repercutem em matéria criminal são incisos IV, V, V-A, VI, VII, IX e X, mas utilizaremos somente alguns deles para demonstrarmos que o referido artigo incorre em inconstitucionalidade.

A competência se rege, obviamente além do juiz natural, pelos princípios da tipicidade e indisponibilidade, cujos critérios começam pelos critérios constitucionais, de cujo rol não pode ser ampliado por norma infraconstitucional, se quer de forma transversa, como por já se definiu sobre as contravenções penais, ainda que em detrimentos de bens, serviços ou interesse da União, suas autarquias ou empresas públicas.

Norberto AVENA (2014, p. 637) nos relembra um caso bem elucidativo para entendermos a extensão de “detrimentos de bens, serviços e interesses:

“(….) integrantes do “Movimento dos Sem-Terra” tentaram invadir a propriedade rural pertencente ao Presidente da República. Nesse caso, não há falar-se em competência da Justiça Federal, pois não se trata o bem em questão de patrimônio da União, mas sim de propriedade particular do Chefe do Executivo. (….)Desta forma, a possível lesão ao patrimônio pessoal ou da família do Exmo. Sr. Presidente da República não tem o condão de atrair a competência da Justiça Federal, justamente por não se enquadrar na previsão constitucional” (STJ, CC 36.617/DF, 3.ª Seção, DJ 22.04.2003).

Nesta mesma toada, relembremos a súmula 147, STJ, no sentido de que é competente a Justiça Federal para processar e julgar crimes cometidos contra funcionário público federal, no exercício das funções. Em outras palavras, o funcionário público por si só, por ser federal, não é considerado de interesse da União.

O STJ em pronunciamento em conflito de competência envolvendo a justiça federal e estadual, relacionado por crime na qual figurava como lesada agência dos correios, entendeu que:

“Nos crimes praticados em detrimento das agências da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, esta Corte Superior já firmou o entendimento de que a fixação da competência depende da natureza econômica do serviço prestado. Se explorado diretamente pela empresa pública – na forma de agência própria –, o crime é de competência da Justiça Federal. De outro vértice, se a exploração se dá por particular, mediante contrato de franquia, a competência para o julgamento da infração é da Justiça estadual” (CC 122.596/SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 08/08/2012).

Nem mesmo documento falso emitido para fraudar tributos que seriam devidos à autarquia federal foi considerado de interesse da União, acaso não ocorresse efetivo prejuízo à mesma, como não nos deixa mentir a súmula 107 do STJ, in verbis:

“Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das contribuições previdenciárias, quando não ocorrente lesão à autarquia federal”.

Não foi por outra razão, que não seja a interpretação estrita do art. 109, IV que o STJ firmou o entendimento de que, quando não há evidente lesão a bens, serviços ou interesse da União, autarquias ou empresas públicas, compete à Justiça estadual, de regra, processar e julgar crime contra a fauna, visto que a proteção ao meio ambiente constitui matéria de competência comum à União, aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal (STJ, CC 114.798 – Inf. 466), ocasião em que cancelou na sessão de 08/11/2000, da 3ª Seção a súmula 91, que generalizava a competência da justiça federal para crimes contra a fauna.

No âmbito do STF se preconiza o mesmo entendimento, como deixou claro o último informativo nº 818 do STF de março de 2016, trouxe importante julgado que ratifica as decisões do STJ acima citados. A questão versava de um crime de coação no curso do processo, em procedimento investigatório que reuniu informações sobre diversas práticas delitivas no âmbito da competência de justiça Estadual, não tendo sido “considerado suficiente para configurar ofensa a serviços ou interesses da União o fato de as testemunhas terem sido inquiridas, também, na Polícia Federal.” (HC 130.219-ES Rel. Min. Teori Zavascki – Inf. 818).

Todo este arcabouço de interpretações sobre a aplicação do art. 109, IV da CR denota claramente que a interpretação que se realiza da competência da justiça federal é restritiva, não se permitindo a ampliação, sequer por via reflexa ou indireta, que amplie a sua competência, como deixou claro o Min. Marco Aurélio em voto recentíssimo no bojo do HC 105461/SP 1ª Turma, j. 29.3.2016.

Neste habeas analisando um homicídio de policiais civis planejado no Brasil, mas executado no Uruguai, observou que o fato de o delito ter sido preparado no Brasil não é suficiente para estabelecer a competência da Justiça Federal, pois, caso o encontro não tivesse ocorrido, os agentes não responderiam por infração alguma, ainda que as vítimas já estivessem no Uruguai. Salientou ainda que, como a execução do crime não começou no Brasil, não é possível a aplicação do artigo 109 da Constituição. “No Brasil, houve a prática de atos meramente preparatórios”. Em outras palavras, “o atuar criminoso foi totalmente praticado em Rivera, afastando a incidência da regra constitucional, cuja interpretação há de ser estrita.”

Trata-se da interpretação restritiva do art. 109, V, CR.

Este dispositivo, bem como a interpretação do STF restou claro que, para que exista a competência federal, é necessária a presença, cumulativa, de dois requisitos: previsão em tratado ou convenção internacional, como por exemplo o Decreto nº 3.018/99, que ratifica a Convenção para Prevenir e Punir os Atos de Terrorismo Configurados em Delitos Contra as Pessoas e a Extorsão Conexa, Quando Tiverem Eles Transcendência Internacional, concluída em Washington, em 2 de fevereiro de 1999, e relação de internacionalidade da conduta.

Não é por outra razão que nem todo crime previsto em tratado internacional é de competência da justiça federal. A julgar de outra maneira, qualquer crime relativo a tráfico de drogas, armas, exploração sexual de menores etc seriam sempre, da competência federal. No entanto, estes crimes somente serão processadas e julgados na Justiça Federal se forem praticadas com predicados de internacionalidade.

Neste sentido, trazemos à baila a súmula nº 522 do STF:

“Salvo ocorrência de tráfico com o exterior, quando, então, a competência será da Justiça Federal, compete a Justiça dos Estados o processo e o julgamento dos crimes relativos a entorpecentes”.

Na doutrina não é diferente do que se extrai da jurisprudência. Alguns doutrinadores (NICOLITT, André, 2015, p. 369), por exemplo, ao restringir a interpretação do art. 109, V entendem inconstitucional o art. 70 da Lei 11.343/06 ao argumento de que há distinção entre transnacionalidade e internacionalidade. Este ocorrerá quando da hipótese do art. 109, V da CR, enquanto que a transnacionalidade exige apenas que a atividade transcenda o território nacional, mas não necessita do envolvimento de países soberanos, ou seja, transnacionalidade não exige dupla incriminação, concluindo pela inconstitucionalidade do referido dispositivo, por não poder ampliar a competência da justiça federal, fazendo alusão, inclusive ao mesmo posicionamento do professor Luiz Flávio Gomes.

Noutro giro, ao recordarmos a atribuição da polícia federal no ar. 144, §1º, I:

“apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;”

Percebe-se a intenção do constituinte originário de guardar simetria e pertinência da atribuição da Polícia Federal a competência da Justiça Federal, o prever a mesma redação já citada de investigar e depois o processamento de infrações penais (não somente crimes) praticados em detrimento de bens, serviços e interesses da União (…).

No entanto, agregou mais uma atribuição, ampliando as atribuições da Polícia Federal, que não necessariamente resultará em competência da justiça federal, quando define como atribuição, também, infrações penais (crimes e contravenções) de repercussão interestadual e a necessária repressão uniforme, conforme a Lei 10.446/02, alterado pela lei 13.124/15.

Da mesma forma como ocorre com o crime de tráfico de drogas, as “células terroristas” podem se instalar em um Estado e não necessariamente, em razão da vasta dimensão territorial que possuem os Estados brasileiros, praticarem os crimes definidos como “terroristas” com repercussão Estadual, nem, contudo, atinjam bens, serviços ou interesses da União, podendo, por exemplo, o agente terrorista, por preconceito de raça, cor, etnia ou religião, com o fim de causar terror social ou generalizado, por meio de explosivos, atentar contra a vida e a integridade física de dezenas de pessoas em transportes coletivos, sabotando o funcionamento de uma malha viária intermunicipal.

Neste exemplo não há em absoluto, nenhuma congruência com o texto constitucional, seja no art. 109, IV e art. 144, §1, I, ambos da CR. Não haverá detrimento de bens, serviços ou interesse da União, nem contudo, repercussão interestadual, necessite de investigação que dependa de repressão uniforme. Pode ocorrer ou não.

Vamos acordar para a realidade! O legislador deve viver em um pais diferente do nosso ou assiste muito “fantástico mundo de Bob”.

Sabemos que as drogas e as armas de fogo transitam por diversos Estados, inclusive são apreendidas drogas e armas que não são produzidas no Brasil. Alguém tem dúvidas que não necessitem de repressão uniforme? A Polícia Federal as realiza e mesmo as Polícias Civis também enfrentando este tipo de criminalidade ela não foi extirpada! Imagine o “terrorismo” somente contando com uma única polícia o investigando? O legislador mandou muito mal.

A extensão territorial de dimensão continental do Brasil não permite que uma única Polícia Federal realize investigação adequada, que abarque os 26 Estados, DF e 5.570 municípios. É necessário um trabalho integrado com as Polícias Civis dos Estados, com o ingrediente principal: com Política Nacional e Integrada de Segurança e autonomia financeira e administrativa para gerir as necessidades técnicas das Polícias Judiciárias, que político nenhum está interessado. Sem isso, começamos igual ao curupira.


REFERÊNCIAS

AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado, 6. Ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 5. Ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2015.

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Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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