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A (in)justa causa para o exercício da ação penal

Por Felipe Faoro Bertoni

Sempre que um sujeito viola uma norma proibitiva de Direito Penal, surge, em tese, o dever do Estado – titular absoluto da pretensão punitiva – de exercer seu Direito de ação, dando início a um processo penal. Antes, convém destacar que a criação de normas jurídicas abstratas, por meio das quais se transforma um fato natural em um fato criminoso, é insuficiente – dada a complexidade da atual tessitura social – para verificar a concreta lesividade do fato praticado. Daí surge a necessidade de interpretação para a aplicação da norma.

A despeito da abstrata e legalmente cominada lesividade social prevista em determinado tipo penal, impõe-se ao intérprete autêntico (e também aos demais atores judiciais) verificar a presença, no caso concreto, da tipicidade material, que, uma vez preenchida, configurará a presença de justa causa, em uma de suas facetas[1].

A questão adquire cada vez mais relevância, tendo em conta a crescente expansão-banalização do Direito Penal, que pode ser verificada pela eleição de novos bens jurídicos (lembremos que molestar cetáceos é um crime previsto no anteprojeto do novo Código Penal), enrijecimento de penas, dentre outras medidas. De fato, atualmente, é difícil a edição de uma lei que verse sobre um “novo” segmento de intervenção estatal sem que sejam definidas condutas criminosas, fenômeno que pode ser exemplificado com a criação de crimes contra o meio ambiente, contra as licitações, contra o consumidor, contra a ordem econômica, contra a ordem tributária, contra o sistema financeiro nacional, lavagem de dinheiro, por aí vai…

Nas palavras de Aury Lopes Jr.,

“a filtragem ou controle processual do caráter fragmentário encontra sua justificativa e necessidade na inegável banalização do Direito Penal. Quando se fala em justa causa, está se tratando de exigir uma causa de natureza penal que possa justificar o imenso custo do processo e as diversas penas processuais que ele contém[2]”.

Evidente que crimes graves, cometidos com violência, carregam em si, a essência da justa causa, afastando, de pronto, o freio interventivo do Direito Penal fragmentário, na medida em que ferem bens jurídicos de expressivo relevo e, por isso, justificam a pronta reação estatal. No entanto, há diversos tipos penais cuja mera subsunção do fato natural à norma não revela, de imediato, rompimento com a ordem jurídica a ponto de emprestar amparo para a movimentação da máquina do Estado e todo o seu custo. Pode-se citar, aqui, ilustrativamente, os fatos abrangidos pelo princípio da insignificância, furto de coisa de pequeno valor, tendo sido a res furtiva devidamente restituída à vítima. Medidas alternativas ou a justiça restaurativa podem ser mais apropriadas à especificidade de cada caso.

A aplicação acrítica e robótica da lei – olvidando a matriz principiólogica estabelecida pela Constituição Federal e pelo ordenamento jurídico de forma sistemática – pode gerar situações teratológicas e evidentemente bizarras, no olhar de qualquer ser sensível.

Imaginemos duas situações hipotéticas:

(I) Um cidadão (primário) que recebe como herança de seu avô, por quem nutria especial afeto, um projétil de arma de fogo da época em que serviu ao exército e que guardou como forma de recordação. Não suportando a dor da perda, como forma de aliviar a saudade, o sujeito guarda no porta-luvas de seu veículo a lembrança, a qual, quando visualizada, lhe desaperta a saudade encerrada no peito.

(II) Um sujeito que, ao manobrar seu veículo de forma negligente, após um agradável jantar na residência de um casal de amigos, causa dano em planta de ornamentação na propriedade do anfitrião, seu amigo de infância.

Em ambas as situações acima mencionadas há abrigo formal para a formulação de hipóteses acusatórias. Todavia, o próprio bom senso impõe o questionamento sobre se há a necessidade e sobre se é racionalmente adequado exercer o direito de ação nesses casos. De um lado da balança existem os gastos com os processos – hora de trabalho de Promotores de Justiça, Defensores, Juízes, Desembargadores, Ministros, Serventuários da Justiça, gastos materiais e cartorários, etc. – e, de outro, dois fatos da vida com os quais pode, ou não, o Direito Penal se ocupar. Parece um questionamento que responde por si só.

O raciocínio complexo e humano nem sempre é o mais fácil e é justamente essa característica que diferencia os homens das máquinas. A subjetividade e a humanidade dos atores processuais é elemento que deve, sempre, permear o filtro processual-acusatório e o tramitar processual.

Com efeito, o abandono total da subjetividade pode causar efeitos deletérios à sociedade, dando espaço a uma burocratização excessiva do ser humano e nos conduzindo a um admirável mundo novo, no qual se opta por dar respostas simples para perguntas complexas, antevendo, com isso, sua essencial insuficiência e incompletude.

Sobre a essência da temátca esboçada, cumpre salientar as considerações de Eros Roberto Grau:

Na Ética a Nicômaco (V 14, 14 1.137 b, 10-20) Aristóteles distingue a equidade e o equitativo, relacionando-os ao justo. O equitativo, embora seja justo, não é o justo segundo a lei, senão um corretivo da justiça legal. A razão disso está em que a lei é sempre geral, e há casso em relação aso quais não é possível estipular um enunciado geral que se aplique com retidão. Nos casos nos quais é necessário que o enunciado se limite a generalidades, sendo impossível fazê-lo corretamente, a lei não toma em consideração senão os casos mais frequentes, sem ignorar os erros que isso possa importar. Nem por isso ela é menos correta, porque a culpa não está na lei, nem no legislador, mas, sim, na natureza das coisas. E assim é porque, em razão de sua própria essência, a matéria das coisas da ordem prática se reveste do caráter de irregularidade.

Por isso, quando a lei expressa uma regra geral e surge algo que se coloca fora dessa formulação geral, devemos, onde o legislador omitiu a previsão do caso e pecou por excesso de simplificação, corrigir a omissão e fazermo-nos intérpretes do que o legislador teria dito, ele mesmo, se estivesse presente neste momento, e teria feito constar da lei se conhecesse o caso em questão. O que Aristóteles mostra – anota Gadmaer – é que toda lei se encontra em uma tensão necessária em relação à concreção do atuar, porque é geral e não pode conter em si a realidade prática em toda a sua concreção. E prossegue: a lei é em presença da ordenação a que se referem as leis, a realidade humana é sempre deficiente em não permite uma sua simples aplicação[3].

Nessa esteira, está na hora de se utilizar de forma mais apropriada o filtro da justa causa para o exercício da ação penal, em todas as instâncias, desde a fase investigativa, passando pelo momento da formulação da acusação, recebimento da denúncia e, ao final, da prolação da sentença.

Afinal, é adequado o brocardo popular que indica que tempo é dinheiro e, em se tratando de gastos públicos, não se podem olvidar os custos materiais e temporais de uma acusação infundada e natimorta, cujo desague somente causará prejuízos sem nenhuma forma de benefício.


[1] Sem ignorar a evidente necessidade de demonstração suficiente de indícios da existência do crime e da autoria delitiva.

[2] LOPES JR, Aury. Fundamentos do proesso penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015. pp. 240-241.

[3] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). Editora Malheiros, 2014. pp. 75-76.

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Felipe Faoro Bertoni

Advogado (RS) e Professor

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