A justiça de transição na Argentina e no Brasil
Por Carla Dóro de Oliveira e Doglas Cesar Lucas
Entre a década de 1970 e 1980, países latino-americanos como o Brasil, a Argentina, o Chile e o Uruguai passaram por um período de forte repressão estatal contra a população civil. Foram “anos de chumbo”, de regimes autoritários que governavam pelo uso da força, época em que a violação de direitos humanos era prática costumeira. Embora a história desses países seja semelhante em muitos aspectos, é interessante averiguar qual o caminho escolhido por um ou outro país para deixar para traz esse período de violação de direitos e reconstruir um espaço democrático, a fim de entender quais os possíveis reflexos dessas escolhas para o futuro de suas democracias.
A noção de justiça de transição engloba todas as medidas adotadas a fim de conduzir um país à construção de uma democracia após um período de restrição de direitos individuais. Para que se torne completo o processo transicional deve passar por quatro etapas distintas, são elas a reparação – moral e pecuniária –, o esclarecimento dos fatos e construção da memória, a regularização da justiça e, por fim, a reforma das instituições estatais (PAYNE; ABRÃO; TORELLY, 2011).
Um aspecto dessa transição deve ser trabalhado paralelamente ao outro e não de forma excludente. Apesar disso, é evidente que no Brasil houve, até pouco tempo, inegável preferência pelo modelo pecuniário de reparação. Essa situação tem apresentado melhoras em nosso país, principalmente após a Lei nº 10.559/2002, que instituiu a Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da Justiça. A partir do trabalho dessa Comissão foram implantadas as Caravanas da Anistia, cujo trabalho é fundamental para a reconstrução da memória e da verdade, mas, principalmente, para a valorização e o reconhecimento da vítima. Duas medidas adotadas pela sessão de julgamento das Caravanas são de extrema relevância: primeiramente, o pedido oficial de desculpas por parte do Presidente da sessão ao anistiado; em segundo lugar, a possibilidade de a vítima ser ouvida e reconhecida enquanto sujeito de direito.
Medidas como essa dão força ao processo transicional no país, credibilizam a imagem do anistiado político e, fator muito relevante, rompem o silêncio imposto pela Lei de Anistia, trazendo ao debate a questão das violações aos direitos humanos cometidas durante o regime militar. Ademais, um modelo reparatório que vai além da reparação pecuniária ajuda a desconstruir a ideia representada pelo termo pejorativo “bolsa ditadura”.
Quanto às comissões da verdade, sua importância já foi estudada a partir dos dados da Base de Dados da Justiça de Transição (TJDB). Esse estudo concluiu que anistias podem causar efeitos positivos desde que combinadas com outras medidas transicionais, como comissões de verdade e julgamentos (PAYNE; ABRÃO; TORELLY, 2011). Portanto, frisa-se primeiramente que, em dado momento histórico, as anistias podem ser benéficas quando, por exemplo, surgem como a única forma de um governo ditatorial “deixar” o poder; ademais, que isso não pode servir de obstáculo, no entanto, para que essas anistias não sejam nunca contestadas; por fim, que nem sempre uma lei de anistia precisa ser revogada ou anulada pelo Judiciário a fim de que a responsabilização dos agentes públicos que cometeram crimes de lesa-humanidade possa acontecer, uma vez que, pode-se optar pela responsabilização não de todos os agentes envolvidos na violação sistemática aos direitos humanos – o que não se pode permitir é a absoluta negativa, por parte do Estado, dessa dimensão da justiça transicional.
O julgamento, nessa perspectiva, pode ser visto como uma etapa importante para que os fatos sejam revividos, discutidos, elucidados e, enfim, encerrados. É um “palco” necessário para o reencontro da vítima e do seu carrasco, agora em posições invertidas, de modo a possibilitar, finalmente, que a vítima conte sua história e seja, de fato, ouvida. É o local de reconhecimento e de entendimento, e o primeiro passo para o perdão (GARAPON, 2002).
Para mais, a estagnação das instituições públicas desde a ditadura é fator que contribui para a continuidade na perpetração de violências contra os direitos humanos. O que se nota é que nosso Judiciário ainda é muitíssimo conservador, o Exército não reconhece a violação sistemática aos direitos humanos cometidas durante a ditadura e que a violência permanece sendo o modus operandi das instituições de Segurança Pública. Logo, a reforma das instituições pode trabalhar como aliada da responsabilização dos agentes públicos.
Nessa senda, é interessante observar que as histórias argentina e brasileira se aproximam e se afastam em diversos pontos. Ambos os países passaram, por exemplo, por recorrentes golpes de Estado (YACOBUCCI, 2011). No entanto, a ditadura em cada um desses países tomou contornos diversos.
Na ditadura argentina os números da repressão causam maior espanto. De 1976 a 1983, registrou-se 30 mil mortos e desaparecidos (PEIXOTO, 2011), enquanto no Brasil, mesmo em um período mais extenso (1964-85), o número de mortos e desaparecidos foi de 434, segundo dados da CNV. Dito isso, vê-se que, apesar de os regimes brasileiro e argentino terem suas similitudes, também se distinguiam em vários pontos, isso porque o regime argentino fazia mais uso do “desparecimento forçado de pessoas”, já no Brasil, o método preferido era a aplicação da tortura aos presos políticos.
Assim como no Brasil, o governo ditatorial da Argentina também editou uma lei de anistia antes de deixar o poder, a Lei nº 22.924/1983 (Lei de Pacificação Nacional). A partir de então as semelhanças entre a experiência argentina e brasileira começam a rarear, dado que já no governo democrático de Raúl Alfonsín, na Argentina, “o Congresso sancionou, em 22 de dezembro de 1983, a lei 23.040, que revogou por inconstitucionalidade e declarou irremediavelmente nula a lei de fato 22.924” (2011, p. 43).
No entanto, a punição dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura argentina enfrentou resistência por parte dos integrantes das Forças Armadas. Assim, o Governo, pressionado, decidiu impedir a continuação da persecução penal através das Leis de Ponto Final e de Obediência Devida (YACOBUCCI, 2011).
Contudo, com a mudança na constituição argentina e a consequente incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos ao ordenamento interno, a Corte Suprema argentina, no julgamento do Caso “Simon”, baseando-se na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso “Barrios Altos Vs. Peru”, entendeu que, em face das mudanças percorridas pelo direito argentino, as Leis de Obediência Devida e Ponto Final não podiam mais prosperar, tendo sido consideradas inválidas (YACOBUCCI, 2011), o que possibilitou a retomada do julgamento dos crimes cometidos durante a ditadura. Além disso, para encerrar de vez a questão, o Poder Legislativo também privilegiou o respeito aos direitos humanos, a partir da Lei n.º 25.779/2003, seguiu o entendimento da Corte e declarou a “‘nulidade insanável’ das leis de ponto final e de obediência devida” (PARENTI, 2011).
Observando-se a história recente dos países vizinhos, vê-se que, enquanto na Argentina “uma das primeiras medidas do governo pós-ditadura foi a criação de uma comissão no âmbito do Poder Executivo para obter informação sobre o destino que tiveram aquelas pessoas que tinham sido vítimas do sistema de repressão ilegal” (PARENTI, 2011, p. 51) – trata-se da CONADEP (Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas); em nosso país, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) no âmbito do Poder Executivo só foi criada pela Lei nº 12.528/2011, enquanto seu relatório foi cinquenta anos após o golpe militar.
Além disso, enquanto a Argentina acatou a decisão da Corte IDH, dando cumprimento aos dispositivos internacionais de proteção aos direitos humanos e invalidando sua lei de anistia; a Suprema Corte brasileira, tendo a oportunidade de declarar a inconstitucionalidade da Lei de Anistia, preferiu abster-se desse feito, alegando que essa tarefa cabia ao Poder Legislativo.
De todo o exposto, é inegável que os caminhos escolhidos pelo Brasil e pela Argentina foram opostos. Embora os defensores da anistia ampla e irrestrita defendam que o regime ditatorial vivido em nosso país foi mais brando do que o dos outros países latinos, isso não pode, jamais, servir de argumento para a ocultação e o esquecimento de fatos tão importantes e de tamanha magnitude para a construção e elucidação de nossa própria história.
Por óbvio, a reabertura dos processos pelos crimes cometidos durante o período ditatorial na Argentina é tarefa árdua, que exige – e exigirá – muito esforço por parte de todas as autoridades envolvidas. No entanto, a busca da verdade permitirá a superação do assunto e o enfrentamento das questões traumáticas. O que se deve ter em mente é que a violação dos direitos de um indivíduo, além de ser um crime, é uma ameaça constante a todos os demais integrantes de uma sociedade e que aceitar que violações tão graves quanto as aqui vividas caiam no esquecimento é permitir que as essas violações venham a se repetir no futuro.
REFERÊNCIAS
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: para uma justiça internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
PARENTI, Pablo F. A aplicação do direito internacional no julgamento do terrorismo de Estado na Argentina. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, DF, 2011, n. 04, p. 32-55, jul./dez. 2010. Disponível aqui. Acesso em 23 abril. 2015.
PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford University, Latin American Centre, 2011. Disponível aqui. Acesso em 17 maio. 2015. p. 212-248.
PEIXOTO, Claudia C. Tomazi. Anistia, memória e direitos humanos: a experiência recente do Brasil à luz dos casos argentino e uruguaio. Revista Internacional de Direito e Cidadania, Erechim, RS, vol. 4, n. 11, p. 9-23, out. 2011. Disponível aqui. Acesso em 05 abril. 2015.
YACOBUCCI, Guilhermo J. El juzgamiento de las graves violaciones de los derechos humanos en la Argentina. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Carla Dóro de Oliveira – Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Bolsista CAPES. E-mail: carladorodeoliveira@gmail.com.
Doglas Cesar Lucas – Pós-Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Roma Tre (2012). Professor dos Cursos de Graduação e de Mestrado em Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí e no Curso de Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior Santo Ângelo –IESA/CNEC.
Versão completa do texto disponível no eBook “Ciências Criminais e Direitos Humanos”, disponível aqui.