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A Lei 12.654/12 e o banco de dados genéticos


Por Mariana Py Muniz Cappellari


O Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral no RE 973.837/MG, caso em que será julgada a constitucionalidade do chamado Banco de Dados Genéticos para os condenados por crimes hediondos, o qual restou inserido na LEP, em seu artigo 9º-A, pela Lei nº 12.654/12. Em que pese à discussão que será encabeçada pela Suprema Corte se dê em torno da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do seu estabelecimento na forma posta, dada a garantia constitucional e humana do “nemu tenetur se detegere”, a presente coluna pretende abordar a aproximação da referida criação com o determinismo biológico, no âmbito da chamada criminologia positivista etiológica, convidando o leitor e a leitora a refletir acerca desta abordagem.

Sem se pretender desmerecer a importância e os avanços obtidos pela ciência no que tange aos exames de DNA, mormente em sede de processo civil, no âmbito das investigações de paternidade, teme-se, evidentemente, no que diz com a sua inserção no contexto do sistema criminal, quiçá considerado tratar-se de um dos instrumentos mais poderosos de controle social.

Isso porque há muito já nos demonstrou ZAFFARONI (1991) a deslegitimidade do sistema penal, bem como a sua seletividade, eis que utilizado pelas forças políticas vigentes de forma verticalizada, como ferramenta de controle das camadas então não inseridas economicamente no contexto social vigente, a fim de manutenção do status quo de uma elite privilegiada. Nesse sentido, AMARAL, GLOECKNER, SANTOS (2013) são expressivos ao asseverar que

“a intensificação de uma cultura do controle passa necessariamente pela transformação dos mecanismos de governança que se dão, sistematicamente, mediante a legislação criminal.”

Nesse interim, considerada a forma como restou introduzida tal medida na seara do sistema penal, é que ficamos à vontade, com toda a certeza, para refletir quanto a sua aproximação de um determinismo biológico, o qual, através do positivismo criminológico etiológico no final do século XIX, como parte de uma ideologia racista generalizada (ZAFFARONI, 2013), terminou catastroficamente na II Guerra Mundial.

De acordo com ANITUA (2008), o próprio nome “criminologia” surgiria nestes finais do século XIX, marcado evidentemente pelo cientificismo e pelo organicismo. A ideia de “ciência”, no caso, daria lugar ao pressuposto básico da anormalidade individual do autor do comportamento delinquencial como explicação universal da “criminologia”. O seu objeto de estudo não seria mais a sociedade ou o Estado, tampouco as leis, mas, sim, e, antes, o comportamento singular e desviado, o qual deveria ter uma base patológica, por isso, a ressalva sempre efetivada em nome de Cesare Lombroso, com ideal no seu “homem delinquente”, um ente diferenciado dos seres humanos normais.

Com todo o efeito, e, diante disso tudo, pode-se afirmar que a Lei nº 12.654/12 ao inserir o artigo 9º – A na Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/1984), obrigando de forma compulsória, portanto, sem atenção a qualquer mandamento constitucional e convencional, no que diz com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado Brasileiro; uma determinada parcela de condenados (apenas aqueles que cometeram crimes hediondos e dolosos com violência de natureza grave contra a pessoa) a coleta de material genético a fim de alimentar a formação de um banco de dados genéticos, se aproxima sobremaneira de uma política criminológica determinista biologicamente, nos termos acima referidos, quiçá quando pretende instituir uma rede de controle dos “geneticamente perigosos”, conforme bem pontuam Amaral, Gloeckner e Santos (2013).

Tal intento, com toda evidência, aponta para uma maior estigmatização do apenado (eis que já enfrenta os efeitos da prisionização), reduzindo o sujeito a um mero objeto de saber, ainda na visão de Amaral, Gloeckner e Santos (2013). Assim como para o positivismo criminológico, a pena, nessa visão, ajusta-se ao grau de periculosidade social de cada indivíduo, como que em defesa da sociedade. A sua justificativa racista e não igualitária, desde então, baseava-se e baseia-se no que as polícias efetivamente faziam (ANITUA, 2008), pois o objeto de estudo dos positivistas criminológicos era o conjunto de presos, ao qual unicamente tinham acesso (ZAFFARONI, 2013). Qualquer semelhança, portanto, não é mera coincidência.

Não se duvida, por outro lado, que o manejo dos exames genéticos possa auxiliar na identificação da autoria de muitos crimes até então não resolvidos, mas questiona-se legal, ética e bioeticamente (CALLEGARI, 2012) a instituição de um banco de dados genéticos que abarque apenas parte de uma população prisional já preordenadamente selecionada.

Consoante QUEIJO (2013), a criação desses bancos de dados instrumentaliza e reflete a discriminação em relação aos menos favorecidos socialmente, tanto que segundo a autora, estudos recentes na Inglaterra dão conta de que estes bancos são compostos, em sua maioria, por dados genéticos de negros, os quais são alvo mais frequente de detenções, o que, por si só, potencializa suas chances de condenação criminal em relação aos brancos.

Não se pode permitir, dessa forma, que a reconstrução histórica de um fato, sob o influxo das garantias democráticas que se procura obter através do processo penal, seja determinada por uma única medida, a qual tende a deduzir caracteres psicológicos a partir de dados físicos ou orgânicos (ZAFFARONI, 2013), dispondo para tanto dos exames genéticos como forma de controle e segrego criminal. Como se pode ver com Zaffaroni (2013),

“(…) o positivismo restaurou claramente a estrutura do discurso inquisitorial: a criminologia substituiu a demonologia e explicava a ‘etiologia’ do crime; o direito penal mostrava seus ‘sintomas’ ou ‘manifestações’ da mesma forma que as antigas ‘bruxarias’; o direito processual explicava a forma de persegui-lo sem muitas travas à atuação policial (inclusive sem delito); a pena neutralizava a periculosidade (sem menção da culpabilidade) e a criminalística permitia reconhecer as marcas do mal (os caracteres do ‘criminoso nato’). Tudo isso voltava a ser um discurso com estrutura compacta, alimentado com os disparates do novo tempo histórico.” 

E a atualidade destes disparates históricos é o que nos faz crer na permanência do autoritarismo e da inquisitorialidade nas normas constantes da Lei nº 12.654/2012. Vale muito a pena refletir!


REFERÊNCIAS

AMARAL, Augusto Jobim do; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; SANTOS, Gabriel Ferreira dos. Direitos Fundamentais e Controle Social. Lei nº 12.654/2012: e o Perfil Genético do Controle se Mostra no Brasil. Florianópolis: Conceito Editorial, 2013.

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008. (Pensamento Criminológico; 15).

CALLEGARI, André Luís; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; ENGELMANN, Wilson. DNA e Investigação Criminal no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Questão Criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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