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A Lei Maria da Penha e as medidas despenalizadoras: uma questão prática

A Lei Maria da Penha e as medidas despenalizadoras: uma questão prática

Não são raras as vezes que decisões provenientes dos tribunais pátrios se mostram alheias aos dilemas da prática forense, em especial junto ao primeiro grau de jurisdição. Revela-se, assim, um distanciamento entre os membros daqueles e os magistrados aos quais são vinculados.

Como resultado, é criado aquilo que convém chamar de entendimento de primeira instância, uma adaptação daquilo quanto decidido em instâncias superiores para a realidade prática vivenciada pelos operadores do Direito e jurisdicionados nas comarcas país afora. Em alguns casos, inclusive, esse entendimento ganha caráter majoritário se sobrepondo à jurisprudência pacífica emanada pelos tribunais.

No campo do Direito Penal, sem que se adentre demais ao mérito, são facilmente verificadas essas situações, a exemplo do uso rotineiro de algemas em audiências criminais, em contrariedade aos dizeres da Súmula Vinculante n.º 11, que muitas vezes é desacompanhado da fundamentação adequada, tal como se regra geral fosse, casos em que se leva em conta a conveniência do instrumento em prol da segurança dos servidores e magistrados presentes.

Outro exemplo é a corriqueira decretação da prescrição em perspectiva, ou virtual, rechaçada pela jurisprudência majoritária mas constantemente aplicada por juízes e promotores. Nesses casos, o juiz projeta eventual pena a ser aplicada, antes mesmo da sentença, e verifica se esta pena seria atingida pela prescrição em concreto (art. 110, §1º, do CP).

Evita-se, assim, dispêndios com processos natimortos, em que mesmo quando há condenação, esta não gera qualquer efeito prático. O mesmo cenário vem se repetindo quando da aplicação do art. 41 da Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/06), que por tempos já foi motivo de controvérsia:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

É seguro dizer que a principal consequência do dispositivo destacado é o afastamento das medidas despenalizadoras previstas na Lei dos Juizados para casos abrangidos pela Lei Maria da Penha, excluindo-se a aplicação de institutos como a composição civil extintiva da punibilidade (art. 72 e seguintes), a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89).

Foi então que, com a sua vigência, iniciou-se debate no meio jurídico acerca inconstitucionalidade do artigo supra, ocasião em que muitos magistrados divergiam quando de sua aplicação. Ainda em 2011, todavia, com o julgamento do HC 106.212/MS, a tese em questão fora afastada pelo STF, que posteriormente ainda confirmou seu posicionamento em sede de controle concentrado de constitucionalidade por meio do julgamento da ADI 4.424 e da ADC 19, ocorrido em fevereiro de 2012.

No mesmo sentido, em junho de 2015, para se adequar à jurisprudência da corte constitucional, o STJ editou a Súmula 536:

A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.

Não obstante, embora a discussão aparentava ter chegado a um desfecho – ao menos para jurisprudência brasileira – fenômeno parecido aos exemplos citados acima vem sendo seguido por magistrados e promotores atuantes em primeiro grau, em que se flexibiliza o entendimento jurisprudencial em prol dos jurisdicionados.

Assim, com a concordância ou mesmo a pedido de órgão acusador, não raro encontramos magistrados que aplicam as medidas despenalizadoras previstas na Lei dos Juizados Especiais para casos abarcados pela Lei Maria da Penha, desde que haja a expressa anuência da vítima.

Caso curioso aconteceu em 2017, quando o próprio Ministério Público do Estado de Minas Gerais impetrou habeas corpus perante o STF (HC 140.452/MG) a fim de ver revogada a proibição da suspensão condicional de processos relacionados à Lei Maria da Penha. Observa-se que um dos argumentos utilizados pelo MPE/MG é justamente o efeito prático da medida: o aumento do número de prescrições.

Ora, sabe-se que casos em que são aplicados a Lei Maria da Penha por vezes tratam de delitos e contravenções cujas penas sequer ultrapassam dois anos de reclusão. Soma-se ao fato de que muitos réus/agressores costumam ser primários e detentores de bons antecedentes, o que resulta em penas em concreto muito próximas ao patamar mínimo legal.

Igualmente, também se faz necessário considerar que são crescentes os casos de denúncia no âmbito familiar, o que faz por aumentar em igual proporção o número de processos junto aos juizados especializados. O efeito de todos esses fatores somados nada mais é do que o aumento de casos de prescrição da pena em concreto, tornando sem qualquer efeito sentenças proferidas após anos de instrução, em processos que inegavelmente geram um desgaste para a vítima, cujo interesse é o próprio propósito da lei.

Nesse sentido, vale lembrar que do ponto de vista do jurisdicionado, a aplicação rápida e sumária das medidas despenalizadoras muitas vezes se traduz em uma eficácia maior do que a eficácia da pena em si, uma vez que atinge rapidamente a finalidade da persecução penal, impondo uma espécie de sanção e consequentemente sustando a agressão no âmbito doméstico.

Sendo assim, é notável que o posicionamento dos tribunais superiores acerca do art. 41 da Lei Maria da Penha se encontra alheio aos percalços práticos gerados pelo afastamento das medidas despenalizadoras.

Na contramão, se mostra mais justa a solução dada por alguns operadores do Direito que atuam diretamente com as vítimas e autores do fato, em que se aplica as citadas medidas desde que acompanhadas do expresso consentimento da vítima, atingindo, assim, a finalidade prática da lei.


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